13 de outubro de 2011

Sublimação da perversidade

Sublimação da perversidade [1]
Geocentelha 340

O espaço geológico não é misterioso como o de Einstein. Já o tempo tem seus mistérios. Alguns olham-nos com ironia quando atribuímos idades de bilhões de anos a fatos geológicos. Entretanto não é só com esses tempos que trabalha a geologia. Num curto ciclo anual o sistema geológico sofre transformações severas como a da sucessão claridade-escuridão. O espaço geológico é ocupado por três componentes distintos: O permanente, o transitório e o itinerante. O primeiro é o arcabouço mineral, não tão permanente, mas assim comparado aos demais; o segundo é formado pelo conjunto flora e fauna com diferentes formas de agregação ao primeiro; o terceiro, aqui limitado à água, cujo caráter é particularmente notado nas águas pluviais. A permanente silhueta da serra denota o caráter permanente do arcabouço mineral; a variação de tons e de porte e a substituição regular da cobertura vegetal denotam o caráter transitório da flora; a aparição regular das águas pluviais e a variação da vazão dos rios são expressões do caráter itinerante da água. Em questão de horas, dias, meses, o sistema geológico muda de roupa, de aspecto, de comportamento.

A humanidade introduz modificações no permanente e no transitório, às vezes sem pensar no itinerante. Este age sobre a humanidade sob os condicionamentos naturais, ou reage às modificações impostas aos demais. Nas cidades as modificações impostas ao permanente e transitório são drásticas, e as respostas também o serão. O Edificado nas cidades funciona como uma membrana mais ou menos impermeável, entre o itinerante que chega e o conjunto permanente-transitório, que espera, cheio de gente exposta às consequências. 

O processo é legível e previsível, mas a humanidade não o lê com atenção. No terrível acidente do Nevado del Ruiz na Colômbia (1985) espaço e tempo geológicos decretaram o fim de Armero e mais de 25.000 habitantes. Erupção, fusão do gelo, corrida de lama, submersão de Armero, bem no meio do caminho. Já no corrente ano a onda gigante que chegou a Sendai (Japão) teria no mar 10 metros de altura, mas ao chegar à costa a inércia levou-a a alturas bem maiores. Nos acidentes da serra do Mar e em outros menores por todo o país, o imprevisto, não imprevisível, é o porte. Armero e Sendai, como Nova Friburgo e Teresópolis, foram colhidas por modificações de um espaço-tempo simples. Armero, em risco de posição, sofreu acidente previsto em mapa; Sendai não precisava de mapa, como toda orla baixa do Pacífico; a serra do Mar é velha conhecida. Se meteoro nos atinge, paciência, é risco fortuito, mas desafiar o previsível é oferecer à divindade sacrifícios não pedidos. Não é casual. Num país em que a Lei pensa que pode substituir inteligência e instrução todo evento geológico previsível confunde-se com atos de Deus. Em verdade trata-se de sublimação da perversidade, fenômeno em que os governos não se distinguem muito uns dos outros. 



Belo Horizonte, 02 de outubro de 2011

Edézio Teixeira de Carvalho
Engenheiro Geólogo.



[1] O Tempo; Opinião; 12/10/11; p. 19

3 de outubro de 2011

Flotação do Pinheiros: Mais mágica frustrada

Agora de forma definitiva o governo paulista anuncia que desiste de implantar o projeto de flotação do Rio Pinheiros, com o qual se pretendia despoluir as águas do rio e reiniciar a produção de energia elétrica na Usina Henry Borden, em Cubatão. Objetivo meritório de recuperar a operacionalidade de um dos projetos energéticos, Billings, mais fantásticos já concebidos no país: o aproveitamento do desnível de 700 metros da Serra do Mar para produzir energia ao pé da serra com a reversão hídrica de águas do Tietê e Pinheiros. Projeto que foi interrompido em 1989 por obséquio do intolerável grau de poluição das águas urbanas de São Paulo.
O caso do Projeto Flotação é exemplar para trazer à tona a facilidade com que administradores públicos se deixam iludir por “mágicas” tecnológicas oferecidas para a solução de crônicos problemas de infraestrutura urbana. O ilusório “passe de mágica” atende as expectativas políticas de nossos governantes em obter resultados de seus investimentos de seu governo a um tempo que viabilize seu aproveitamento e sua exploração político-eleitoral. Ao mesmo tempo, esse encanto com a solução fácil e rápida para problemas crônicos faz parte da enorme dificuldade cultural de nossas administrações públicas trabalharem com perspectivas de médio e longo prazo, com programas que exigiriam continuidade ao longo de sucessivos governos.
Esses atributos os tornam assim vulneráveis a propostas mirabolantes, quando não a propostas espertamente engendradas nos escritórios de grupos privados interessados nos futuros contratos de implantação ou exploração das “mágicas” propostas.
Outro exemplo na ordem do dia são nossos deletérios piscinões, com os quais se prometeu ao governo paulista e prefeituras metropolitanas o mágico fim das enchentes. Estamos aí hoje com vários desses atentados sanitários, urbanísticos e ambientais desvalorizando e poluindo áreas públicas densamente habitadas e as enchentes sucedendo-se, a cada ano mais freqüentes e intensas. Fruto da incompreensível resistência em atacar as verdadeiras causas do problema maior através de um grande e prolongado elenco de medidas não estruturais voltadas a desimpermeabilizar a cidade e a reduzir o assoreamento das drenagens por sedimentos e lixo.
Gastos declarados de 160 milhões de reais na frustrada experiência da flotação na verdade são pequena parte dos prejuízos. E o tempo dedicado ao projeto ao longo de quase 10 anos por diversos órgãos públicos? E o atraso imposto nos estudos e na implantação de medidas técnicas que realmente fariam sentido? Tudo isso vale muito dinheiro e se traduz na prática em maior redução ainda da já baixa qualidade de vida da população. E isso, que preço teria?

Creiam os administradores públicos, não há mágicas no trato da coisa pública. Sejam mais suspeitosos e resistentes frente a ofertas de soluções rápidas e fáceis. Delas desconfiem. E escudem-se para tanto no corpo técnico de suas instituições públicas como o IPT, a Universidade, os vários Institutos de Pesquisa que ainda insistem em sobreviver, nos técnicos de valor que ainda sobraram do esvaziamento dos órgãos públicos, em empresas privadas de reconhecido mérito técnico e ético.

Edézio Teixeira de Carvalho
Eng. Geólogo
Geól. Álvaro Rodrigues dos Santos (santosalvaro@uol.com.br)
·  Ex-Diretor de Planejamento e Gestão do IPT e Ex-Diretor da Divisão de Geologia 
·  Autor dos livros “Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande Barreira da Serra do Mar”, “Diálogos Geológicos” e “Cubatão”
·  Consultor em Geologia de Engenharia, Geotecnia e Meio Ambiente
·  Membro do Conselho de Desenvolvimento das Cidades da Fecomércio