GC 428 QUE FAZER PELO SÃO
FRANCISCO VIII
A
salvação do São Francisco depende muito da entrada definitiva da sociedade numa
era de predomínio das leis naturais sobre as humanas, o que, contrariamente ao
que se possa pensar, não consiste em extinguir as leis humanas, mas fazer que estas
sejam redigidas exatamente com o espírito de dirigir as ações humanas para
corrigir os danos territoriais e não para afastá-las deles. Repito, perdoem-me
a insistência, analogia já exposta recentemente entre o corpo humano (anatomia
e fisiologia) e o sistema geológico. Exemplo: uma voçoroca, ou um conjunto
delas, é para o sistema geológico como uma dermatite para o corpo humano. O que
faz a sociedade diante da dermatite? Chama o médico! O que faz a sociedade
diante da voçoroca ou de um conjunto delas? Afasta o profissional, aqui, com
respeito aos demais, representado pelo geólogo. Afinal, associar à nascente
gerada por voçoroca entidade artificial que impeça exatamente o tratamento
necessário é crime de estado contra
o território que compete a ele defender! Este seria o recado do dia, mas o
costume gera o hábito, e seguirei um pouco só mais.
A
evolução das formas de apropriação da sustentabilidade ao longo da história e a
clara opção de sociedades organizadas globalmente pelo obscurantismo da Lei que
tudo determina conflita frequentemente com as regulamentações de exercício profissional.
Exemplifico com o que mais me diz respeito: Lei nº 4.076, de 23 de junho
de 1962 que regula o exercício da profissão de geólogo. Art 6º: São da
competência do geólogo ou engenheiro geólogo: … b) levantamentos geológicos,
geoquímicos e geofísicos; c) estudos relativos a ciências da terra; e) ensino
das ciências geológicas ...; f) assuntos legais …; g) perícias e arbitramentos
…
Exemplo
de lei ambiental: O Código Florestal: Art. 2º - Consideram-se de
preservação permanente, pelo só efeito desta Lei, as florestas e demais formas
de vegetação natural situadas … Segue-se todo o conjunto de proibições que não levam em conta
particularidades locais, então afastadas do exercício profissional de geólogos,
agrônomos e outros. Já que falei no médico, recorro ao juramento de Hipócrates,
que reproduzo em versão de autor abaixo identificado: "Eu, solenemente,
juro consagrar minha vida a serviço da Humanidade. ... Não permitirei que
concepções religiosas, nacionais, raciais, partidárias ou sociais intervenham
entre meu dever e meus pacientes … não usarei meu conhecimento médico em
princípios contrários às leis da natureza. Faço
estas promessas, solene e livremente, pela minha própria honra."
O
Código Florestal é a mais abrangente lei de gestão em vigor no Brasil. Seu
caráter autoritário e desvinculado de adequada fundamentação técnica
exemplifica-se na determinação de Áreas de Preservação Permanente (APP) de
forma puramente geométrica (sem desrespeito ao profissional, a lei do agrimensor?).
Por exemplo, por que o uso autorizado nas regiões montanhosas do Sudeste pelo
Código Florestal é tão conflitante com o que a boa lógica recomendaria? Com
efeito, como declarar de Preservação Permanente toda a faixa aluvial, por
exemplo, na Zona da Mata mineira, que costuma ser a única área plana existente
no mar de morros e
liberar até declividades de 100% encostas onde, por isto mesmo, estão
instalados os mais destrutivos processos de erosão laminar e linear? Por que
declarar Áreas de Preservação Permanente as situadas acima da cota 1.800
metros, quando, se elas existissem em extensão expressiva, seria extremamente
útil para a civilização brasileira instalar nelas cidades, que então viveriam
condições civilizatórias mais próximas das de sete de seus irmãos sul-americanos,
que urbanizam até acima de 3.000 metros
de altitude ou chineses cujos trens rodam até acima de 4.000 m? Por que não
excluir explicitamente da APP circular de 50 metros de raio em torno de
nascentes e olhos d’água, as nascentes das voçorocas, cujo surgimento marca
exatamente o episódio final de profunda
degradação ambiental por erosão do tipo? Por que, nas margens de pequenos
córregos de cabeceiras, impedir-se o plantio de inúmeras espécies de suporte à
alimentação rural, assim dispensando a rega, como bananeiras, inhame, arroz e
outras?
Outros
ordenamentos de gestão vêm sendo introduzidos, com viés autoritário nítido, que
conduz obviamente à estagnação
tecnológica. Por exemplo, a Resolução nº 307 do CONAMA, de 5 de julho de
2002 estabelece diretrizes, critérios e procedimentos para a gestão dos
resíduos da construção civil. Destaco o disposto no Art 4o em seu §
1º que diz o seguinte: “Os resíduos da construção civil não poderão ser
dispostos em aterros de resíduos domiciliares, em áreas de "bota
fora", em encostas, corpos d`água, lotes vagos …”
A
inconsistência técnica da Resolução acima reside, em primeiro lugar, na
proibição da disposição de resíduos da Classe A, em princípio todos inertes,
juntamente com o lixo doméstico, exatamente quando os resíduos inertes, por
exemplo em regiões montanhosas, seriam material de grande utilidade para
disposição a jusante do lixo domiciliar nas funções complementares de contenção
frontal e de filtração, além de ser material em geral adequado para o
recobrimento, onde não esteja prevista edificação; em segundo lugar, a
Resolução fecha as melhores possibilidades geológicas de solução adaptada ao
contexto local, excluindo previamente tipologias físicas e institucionais de áreas
para a disposição final. Esse conjunto de inconsistências conduz, por exemplo, à
opção por áreas de boas características físicas (nobres, por assim dizer), e
oposta a um dos princípios mais
claramente justificados da ciência da gestão: Por tal princípio, deveriam
ser, admitida a hipótese de ser impraticável a reciclagem local, sempre
destinadas à recepção de resíduos inertes e lixo domiciliar exatamente as áreas
fisicamente degradadas ou naturalmente mal conformadas, porque essa disposição
aí teria como efeito colateral benéfico a
melhoria das condições físicas da área, enquanto a disposição em áreas
nobres só pode piorar as características
de tais áreas.
Ainda,
as dificuldades de encontrar em regiões montanhosas áreas que atendam às
exigências legais determinam distâncias
médias de transporte econômica e ambientalmente intoleráveis, de modo que
uma análise competente do custo de
oportunidade revelaria a possibilidade clara de gastar mais na disposição
em local mais próximo exatamente com as economias obtidas no transporte.
Conclusão: A lei autoritária tem provocado
posicionamentos pontualmente absurdos, que, ao invés de serem crescentemente
reconhecidos como tais parecem tender a generalizar-se.
Não tem
este trabalho a pretensão de propor amplamente a reforma da legislação
ambiental, que tem muitos pontos
positivos, razão por que são apresentadas visões básicas do que seriam as
características de legislação não estagnante, sem abrir mão das mais
rigorosas exigências de controle ambiental:
§ Contemplar
a diversidade e valorizar o desempenho profissional, que tire partido dessa
diversidade em benefício de atender ao objetivo da lei;
§ Colocar
sempre a possibilidade de o julgamento profissional, baseado no contexto e na
efetiva responsabilidade profissional, prevalecer à lei de gestão, porque a lei
que regula o exercício profissional terá de ser superior em todas as
profissões. Isto não é proposta absurda, isto é exatamente o que faz a lei do trânsito, que transfere do sinal
luminoso ou da placa a autoridade para o guarda que chega para organizar o
tráfego.
§ Deve
ter a capacidade de mobilizar a inteligência em busca de solução tecnológica adequada.
Por exemplo, a lei pode condicionar certo empreendimento a ser implantado
apenas se demonstrar que pode chegar a resultados exigidos, como não gerar
caudais tecnogênicos (enxurradas), isto é, caudais superiores aos da condição
anterior à implantação do empreendimento.
Há,
finalmente, outras questões preocupantes em matéria ambiental. São apresentadas
três delas:
§ São
sempre os outros ou as atividades dos outros as responsáveis
pelos grandes problemas ambientais da atualidade. Esse comportamento, provavelmente
originado na ausência de base epistemológica, questão bem pontuada por Rohde
(1994), é notório nos que pensam e, talvez gostem disto, que a única solução
para esses problemas está na punição exemplar. Por aí talvez se encontre explicação
para o caráter autoritário e inflexível de leis e outros ordenamentos
ambientais, que estão a um passo de abolir a liberdade de criar, sem se refletir em que em tudo o que se ignora inexiste a criação.
§ A
extrema simplificação da natureza geológica, com a generalização do uso de
conexões automáticas entre situação geológica e prognósticos comportamentais
tidos por intoleráveis. São exemplos as conexões simplistas entre certas
atividades territoriais e as áreas de recarga de aquíferos, definidas de forma simplificada. Essa simplificação tem pontos
culminantes, por exemplo, quando se trata de apontar vulnerabilidades especiais
dos domínios de rochas carbonáticas.
§ É
importante refletir sobre a posição do geólogo diante da maior catástrofe, no
Índico, natal de 2004, presenciada ao vivo e a cores pela humanidade. Esta tem
a seu dispor a ciência de base da Gestão, que pouco usa, e merece que essa
possibilidade seja efetivada. Queira-se ou não reconhecer, a Geologia de
Engenharia é o principal representante dessa Ciência que assistiu a tudo com
perplexidade e resignação. Tão dispensada pelas leis de gestão, a GE acabou
faltando às populações do Índico e é sintomático que esteja tão hesitante
diante de previsões catastróficas muito mais prováveis que o acontecido, e sem
posicionamento de teor crítico em relação às frequentes evidências de falta de
base científica de muitas outras previsões.
Nenhum
geólogo deve desrespeitar a lei, e se ele for posto diante de lei de gestão que
determine procedimentos diversos daqueles que jurou respeitar e fazer cumprir
de acordo com o Artigo 22 da Constituição Federal e com a lei 4.076, sua
posição terá de ser empenhar-se por convencer as partes envolvidas de que, em
verdade, não há lei ambiental maior que aquela que confie ao conhecimento
profissional universalmente reconhecido a definição da melhor conduta.
Cito opiniões abalizadas recentes: “Não
se pode impedir sob nenhum ângulo que a ciência avance ...” Juiz Carlos
Alberto Menezes Direito, finado Ministro do Supremo Tribunal Federal, como
ainda candidato indicado para o cargo, dando resposta ao Senador Antônio Carlos
Valadares na sabatina de 29/08/07 na Comissão de Constituição, Justiça e
Cidadania do Senado Federal sobre regulamentação de pesquisas na área médica.
"Respigos da situação
portuguesa e da situação europeia" ... “Porém, um governo, seja ele qual for, quando
aplica uma pancada (decisão) a um “sistema humano” (o povo português ou outro),
essa pancada não surte o efeito desejado pelos governantes, pela simples razão
da costumada falta de senso e qualidade dessas acções, algumas delas “contra
natura”. Muitas vezes essas acções até vão contra recomendações dos técnicos e
cientistas nomeados pelo próprio governo,
esquecendo-se os governantes que “a Ciência e a Técnica dizem o que é de
prever”. E quando o governo executa o contrário, as leis da Ciência, como são
as da Economia, esmagam todos os súbditos, só escapando os que trabalham na
escuridão e são muitos”
J. BARREIROS MARTINS
Prof. catedrático emérito jubilado da Uminho Diário do Minho em 09-07-2016.
Salvemos o São Francisco, o melhor
símbolo das necessidades do território brasileiro no momento.
Informo que,
pelo menos em parte, o acima escrito está baseado nos textos abaixo
CARVALHO,
E.T. & PRANDINI, F.L. (1998). Áreas urbanas. In: BRITO, S.N.A. &
OLIVEIRA, A.M.S. Geologia de Engenharia., ABGE. p. 487- 497. São Paulo.
CARVALHO,
E. T.. 1.999. A geologia na reconstrução das cidades. In: Congresso Brasileiro
de Geologia de Engenharia, 9. Associação Brasileira de Geologia de Engenharia e
Ambiental (ABGE). Anais (CD)... 15 pp. São Pedro – SP.
CARVALHO,
E. T. (2005) Legislação Ambiental e Exercício Profissional. Congresso
Brasileiro de Geologia de Engenharia e Ambiental, 15o . Associação
Brasileira de Geologia de Engenharia e Ambiental-ABGE. Florianópolis, SC.
CARVALHO,
E. T. ; LIMA, V. S.; CAMPOS, F. C. (2015) Reabilitação Territorial – Principal
Demanda da Gestão. In: Congresso
Brasileiro de Geologia de Engenharia e Ambiental, 15o . Associação
Brasileira de Geologia de Engenharia e Ambiental-ABGE. Bento Gonçalves, RS
RIBEIRO, D. - 1983 - O Processo Civilizatório. Vozes Ltda,
7a Ed. Petrópolis. 257 pp.
ROHDE,
G. M. Epistemologia Ambiental. EDIPUCRS. Porto Alegre. 233 pp. 1994.