16 de maio de 2013

A insônia dos outros

A insônia dos outros [1]
Geocentelha 362

Reconstituo fato de infância, anos 50, na casa onde morávamos: No intervalo de novelas, Voz do Brasil, meu pai ouvia o programa na sala; na cozinha a moçada conversava, um sentado à janela, costas para o vazio, sobre muro de pedra seca que apoiava a parede; o restante da casa ficava sobre um porão. Ao acordar pela manhã, e chegar à cozinha, dei com o clarão devido à ruína do muro, levando parede e janela onde estivera assentado o José. Não chovera durante a noite, e o muro ruíra  menos carregado do que estivera horas antes. O fato atraiu-me para os processos geológicos. Um deles, estrelado pelo rio e pelo córrego, repetia-se com frequência, o córrego enfurecido com chuvas torrenciais atacava o rio, que, estando baixo, cedia lugar vendo depositar-se à margem um delta semilunar de blocos rochosos, mas quando estava alto, o rio represava o córrego, e este, passada a tempestade, ficava limpo formando remanso de águas transparentes, muito piscoso para lambaris e acarás. Festa para os olhos e emoções da pescaria com anzol mosquitinho.

Em 1980, sábado pela manhã, colhia dados para a dissertação de mestrado em Ouro Preto, quando vi os movimentos finais do escorregamento de talude em direção aos fundos da Santa Casa. Por vários dias trabalhamos sob pressão em comissão algo informal que representava as instituições UFOP, pro Memória (líder no caso), CPRM e UFMG/IGC, inclusive tendo de contar com a compreensão da direção da Santa Casa, removendo doentes da ala mais ameaçada. Não fui lá recentemente, mas, tendo acompanhado por anos o resultado das intervenções de estabilização, tenho por certo que elas resolveram o problema. Posteriormente a esse evento, ocorrências diversas provocaram destruição e morte em Ouro Preto, como em 1997, quando perderam a vida 11 pessoas de uma só família, em área de Risco III, a mais alta, conforme consta da Carta Geotécnica de Ouro Preto, elaborada por mim entre 1980 e 1982. No recente acidente de que muitos hão de lembrar-se, em que perderam a vida dois taxistas, sob escorregamento próximo à estação rodoviária e Santa Casa, a área estava também classificada como de Risco III na parte principal.

Já aí por 1989, em trabalho de campo com estagiários, numa daquelas vilas chamadas São Jorge entre as avenidas Raja Gabaglia e Barão Homem de Melo, fomos surpreendidos por uma pancada de chuva muito forte e buscamos abrigo numa casa frágil, onde estava apenas uma senhora idosa. Ao ouvir o ronco estrepitoso da enxurrada ao fundo, perguntamos-lhe se ela não temia. Respondeu-nos que naquela hora era fácil sair, mas que passara por muitas situações parecidas, todavia de madrugada, às vezes no escuro, pela queda da energia.

Imaginei então as dificuldades para evadir-se de pessoas como ela, várias, nas pelo menos 5 ou 10 mensagens anuais de aviso, durante a madrugada, com crianças, e, quem sabe, cadeirantes, no escuro. Vocês imaginaram? Eu imaginei.      



Belo Horizonte, 24 de março de 2013
                                                                    
Edézio Teixeira de Carvalho
Eng.o Geólogo



[1] O Tempo; Opinião; 30/03/2013; p.21

Petrópolis: Erro a corrigir

 Petrópolis: Erro a corrigir
Geocentelha 361

Quem queira contribuir para redução de acidentes geológicos e de suas consequências trágicas deve  buscar eficácia para a contribuição que se considere capaz de dar. Fator que determina a desejada eficácia é o aproveitamento das oportunidades, como a dos deslizamentos de Petrópolis, mais uma vez com dezenas de vidas perdidas. Hora de dizer que há erro evidente a corrigir, mas isto dito sem deixar de enaltecer o heroísmo sublime de agentes públicos que perderam a vida tentando salvar seus semelhantes em perigo, muitos deles crianças.

Dentre inúmeras ações coordenadas entre os tapetes de Brasília e as trilhas enlameadas da serra do Mar, ou de qualquer outro local em que ocorram acidentes, não é permissível esquecer que ações mais eficazes para reduzir e impedir suas consequências mais trágicas devem ocorrer em dias ensolarados do inverno.

Essas ações incluiriam mapeamentos geológicos especiais, redistribuição locacional das habitações, erradicando assentamentos inviáveis do ponto de vista da segurança por estarem em áreas de instabilidade incorrigível, mudando modelos de assentamento para ajustarem-se estruturalmente às características geotécnicas dos terrenos de segurança marginal, de instabilidade corrigível.

Há riscos geológicos não seletivos, que matam ricos e pobres. São exemplos tsunamis como o (a) que vitimou Sendai no Japão, recentemente; corridas de lama como a que sepultou 90% da cidade colombiana de Armero em 1985. Em casos como esses a rejeição das áreas perigosas poderia começar pelos cidadãos capazes de chamar atenção para suas atitudes, como médicos, engenheiros, jornalistas, e, naturalmente, geólogos, embora estes compondo parcela insignificante da população, mas naturalmente obrigados a terem espírito crítico mais desenvolvido a respeito dos sinais da terra. Essa massa de cidadãos capazes de formar opinião, com a sua simples rejeição, e com as pressões que poderiam exercer sobre os dirigentes, levariam povo e governos a tomar decisões individuais e coletivas mais adequadas.

O caso dos riscos seletivos como os deslizamentos, que arrastam moradias frágeis e costumam apenas arranhar as sólidas, é mais complexo porque em relação a eles os poderosos não tendem a rejeitar os locais instáveis, senão a tomar medidas drásticas de contenção. Assim podem não influenciar os pobres e os menos instruídos a serem seletivos em relação aos locais de habitação.

Um erro é certo: O de manter ocupadas por anos a fio grandes áreas sujeitas a deslizamentos, e a outros tipos de riscos geológicos, com a pretensão de que os avisos sejam capazes de fazer as pessoas abandonarem suas casas. O erro está em suporem, as autoridades, que as pessoas estejam dispostas a sair ao primeiro aviso, ou a repetirem a saída depois de duas ou três saídas sem confirmação da ocorrência, ou ainda que possam sempre sair, levando velhos, doentes, crianças, de madrugada, no escuro.        



Belo Horizonte, 20 de março de 2013
                                                                    
Edézio Teixeira de Carvalho
Eng.o Geólogo



[1] O Tempo; Opinião; 23/03/2013; p. 21


O verdureiro de Bangcoc

O verdureiro de Bangcoc[1]
Geocentelha 359

Instado a opinar sobre avisos de tsunamis, o verdureiro de Bangcoc, perguntou: Então vocês me avisam do tsunami, e eu subo no primeiro coqueiro, é isto? Tenho refletido sobre o sistema geológico, com frequência variável. Incapaz de dedicar-me a pensamento desprovido de objetivo imediato, meus temas envolvem questões utilitárias. Lembro o homem que não poderia encontrar o mesmo rio duas vezes, porque no segundo encontro ambos teriam mudado. Quem propusera a declaração? Dou com o nome de Heráclito, no sumário bibliográfico um pré-socrático de Éfeso.
Encontrei atribuída a ele coisa mais profunda: Só pode conhecer o bem que a saúde representa quem tenha experimentado o mal trazido pela doença. O estado chuvoso, e o de seca, extremos, são partes da mesma realidade, estados limites do sistema geológico. Heráclito dizia também que “tudo flui como um rio”.

Na Geocentelha 348, publicada aqui sob o título “Três tempos”, escrevi: “A água vai e volta, erode e para. No ano que vem haverá menos terra para absorver água, porque o tempo geológico de substituição do solo erodido mede-se em centenas, milhares, milhões de anos. Então a representação geométrica do ciclo da água não pode ser um círculo (plano) mas uma helicoidal, para bem representar o gradual esgotamento da sustentabilidade geológica” (grifo novo). Isto equivale a dizer que, não obstante a água, recurso ciclicamente renovável, ir e voltar ano a ano, o solo, recurso redutível ao longo do tempo, que deveria recebê-la, não estará todo lá no ano seguinte.

Há outra questão entre sistema geológico e água. Ele é formado pelos componentes permanente (arcabouço mineral), transitório (matéria viva), e itinerante (água). A geologia clássica dedicada à pesquisa mineral trabalha com o primeiro componente, complementarmente usa o segundo (geobotânica, p. ex.) e raramente o terceiro (exceto quando se trata de água subterrânea, tema hidrogeologia). O componente itinerante faz do sistema geológico um objeto ímpar: Ele é capaz de perder na seca parte significativa de sua massa, diga-se 3% de uma capa superficial de solo poroso, e de recuperar esses 3% na estação chuvosa. A humanidade nunca reconheceu formalmente o evidente compromisso natural de jamais impedir, e de facilitar a entrada desses 3% que retornam ciclicamente, por dois meios a serem aplicados em cada caso: Reposição de solo poroso a substituir o erodido, por exemplo através de aterros de resíduos bem situados e executados; atravessamento da placa tecnogênica que separa nas cidades o edificado do substrato poroso, para recarregá-lo. Na drenagem urbana e das estradas, a água retirada por drenagem convencional é a que faltará na seca.

As águas que atormentam as cidades vão socorrer as hidrelétricas. Poderíamos fazê-las chegar lá mais brandamente. Como? Copiando as sabodams dos japoneses e refletindo um pouco mais sobre o que disse o verdureiro de Bangcoc.    



Belo Horizonte, 10 de janeiro de 2013 
                                                                 
Edézio Teixeira de Carvalho
Eng.o Geólogo 



[1] O Tempo; Opinião; 31/01/2013; p.17


SOS, Arquimedes!

SOS Arquimedes![1]
Geocentelha 358

Entendeu o CREA que eu merecia a Medalha do Mérito por minha atuação profissional. Honrado por compartilhar tão grande homenagem com os demais agraciados, peço-lhes vênia para destacar a memória de Walter Arcanjo Dornelas com quem convivi na Escola de Minas nos anos 70, por sua comovente dedicação à ciência, e para dividir a homenagem com 7 irmãos, hoje 6 engenheiros, que me seguiram na escola e para agradecer a ela a homenagem que nos prestou em recente sessão comemorativa da festa do Doze. Incluo, neste compartilhamento familiar de engenheiros, filha, genros, sobrinhos, alguns aqui presentes. Agradeço em meu nome e dos demais homenageados aos membros da Sessão Plenária que nos concedeu a medalha.

E chego à hora de dizer o que me cabe refletir sobre a homenagem: Não é para que encerremos carreira agasalhados na certeza de que nossa categoria reconheceu-nos, mas impulsionados por ela a uma continuada luta em defesa de seus princípios mais fecundos. Quanto a mim penso que mais que Newton, Arquimedes, tão envolvido com a água, pode guiar-me com êxito na batalha sem trégua em defesa dela, lembrando a ação da água sobre solos e rochas, e para não me inspirar só na velha Europa, lembro a intimidade com que água e solo se acomodam na extrema simplicidade da sabodam japonesa para conviverem em terras altas, os dois assim nutrindo as plantas para que cubram de verde a terra.

O verde, cor do volante que distribuo, símbolo ideal de ambientalistas, é o resultado do azul da água impregnando o solo, não indo embora cedo a partir de qualquer nascente, e fazendo prosperar a flora, muito diferente daquele amarelo-palha da flora precocemente esturricada porque mandamos as águas embora no dia mesmo em que nos chegam, em primeiro lugar criando voçorocas e em segundo lugar negando às águas que se despedem de nós o abrigo prometido pelos poros de um entulho bem disposto.

Eis aí o resumo da maior contradição que enfrentam as engenharias, como a geológica, civil, geotécnica, agronômica, e outras, que veem a natural associação entre água e solo, absolutamente necessária para corrigir efeitos da erosão que atingiu extensos territórios deste país, proibida essa indispensável associação por lei que, baseada na suposição de que todas as nascentes são sagradas, impede a reabilitação de territórios maiores que a Bolívia. Sim. É isto: Defendemos o verde e a recarga dos aquíferos, e mesmo sabendo que, pelas leis da hidráulica, nenhuma nascente participa de recarga, e todas de descarga, mesmo assim defendemos qualquer nascente, não importa a classificação geológica que tenha. APPs urbanas ou rurais excluem de todas as áreas do CREA a possibilidade de colocarem a serviço da sociedade sua contribuição esclarecida, algumas dessas APPs expondo o povo ao risco de morrer em claro desrespeito à Constituição. Reiterando meu comovido agradecimento, confio que o CREA pensará no caso.          



Belo Horizonte, 06 de dezembro de 2012 

Edézio Teixeira de Carvalho
Eng. Geólogo




[1] O Tempo;  Opinião; 02/01/2013; p. 17

O que pode o mais, pode o menos

O que pode o mais, pode o menos[1]
Geocentelha 357

O que pode o mais pode o menos. Lembro o princípio do Direito para alertar a sociedade quanto ao risco a que se expõe por não confiar à geologia parte substancial da solução dos problemas geológicos que a afligem. Antes de aprofundar a questão, digo que o conceito de risco é abstrato, lembrando que para a criança debruçada à janela, não faz diferença estar ela no térreo ou no décimo andar. Descobrimos o pré-sal, nós mesmos, brasileiros, geólogos formados nos apenas 19 cursos de geologia do Brasil. Naturalmente não geólogos participaram, mas o “vamos para o alto mar” e o “furemos aqui”, “furemos ali”, foram decisões geológicas.

A façanha é do porte da conquista do espaço. Pois bem: o que está por vir na extração é muito mais, porque haverá decisivo impacto na tecnologia da pesquisa e indústria extrativa mineral e de águas subterrâneas, nos recursos técnicos da investigação ambiental e do seu controle, nos mais avançados campos da engenharia e nas tecnologias de ocupação e uso do solo. É nesta que ponho o dedo agora, começando por uma pergunta: Por que a categoria de tão destacada contribuição em um dos campos mais críticos das perspectivas de suprimento da humanidade para o futuro não participa de forma igualmente destacada de coisas muito mais simples, quais sejam a identificação e  controle das condições de risco geológico que a ameaçam? Por quê, se as configurações geológicas que determinam a formação, distribuição e localização das riquezas escondidas são as mesmas que determinam eventos e processos que podem ameaçar-nos? Por que a humanidade, que dá tanta relevância aos riscos de suposto aquecimento global, não reserva a menor atenção ao risco real representado pelas perdas crescentes de solo, este sim o principal fator, não renovável, da sustentabilidade, tanto o arrastado pelas águas torrenciais de uma Mantiqueira quanto o levado pelas mansas águas das terríveis nascentes das voçorocas, “protegidas” por lei?

Dia desses encontrei profissionais de nível superior que emitiram juízos reveladores de conhecimento escasso sobre o risco que supunham ou “sabiam” correr, muitas vezes invertendo o sentido da realidade, algo assim como se tivessem chegado à terra “de véspera”. Ora, conhecimento geológico básico é alcançável por todo cidadão, habilitando-o a evitar ser atingido por deslizamentos, inundações ou acidentes como o de Sendai, Japão (2011), e o de Armero, Colômbia (1985), onde certamente perderam a vida médicos, engenheiros, professores universitários, e talvez até desatentos geólogos. Isto mostra que nem todo o dinheiro do pré-sal, em bom momento endereçado pela Presidente à educação, será capaz de evitar não acidentes tais, mas suas piores consequências se essa educação não der conta de formar cidadãos capazes de exercer opções corretas e de exigir de governos que o façam.

Em percepção de risco estaremos melhor que os romanos de Pompeia?



Belo Horizonte, 02 de dezembro de 2012 

Edézio Teixeira de Carvalho
Eng. Geólogo




[1] O TEMPO; Opinião; 05/01/2013, p 15

Gigante invisível

Gigante invisível [1]
Geocentelha 356

Cidades são obras incompletas, de metabolismo insubmisso, concebidas só nas partes edificadas. Nelas faz-se a casa, que desvia águas pluviais, e não se faz reservatório ou cisterna de infiltração para neutralizar seu principal impacto físico. Fixa a lei que nascentes definem Área de Preservação Permanente. O lixo comum é tratado como cápsula nuclear, quando vejo nele apenas aspecto desagradável e mal-cheiroso. Diz-se que a água poluída polui o solo por onde percola. Sim, mas na percolação a poluição mais comum da água é sequestrada pelo solo como nutriente necessário a ele, seguindo ela purificada em frente.

Generalização negativa dispensa contextualização geológica, base da ciência da gestão. Para disposição do lixo em áreas montanhosas, respeitadas as APP’s, não se encontra local que atenda ao Código Florestal, exceto áreas privilegiadas (Aterro Sanitário na acrópole de Atenas?). Alguns aterros ficam parecendo arquibancadas, esquecendo-se o uso futuro, mais importante que o da recepção. Leis ambientais, desconhecendo o arranjo natural da sustentabilidade em vaso fechado, anistiam baleias, capivaras, sem perceber que isto desequilibra a evolução das massas geológicas envolvidas na biosfera. A cada baleia que morra de velha, talvez sofrendo dores maiores que a da sua pesca, centenas de bois a mais a provocarem erosão e efeito estufa, milhares de frangos a sofrerem as dores da morte programada, como se a dor de cada um fosse menor que a da baleia. Cada tatu preservado comerá a mandioca ao seu alcance, privando o lavrador do próprio manjar que é e do suculento tubérculo. Será também mais área comprometida a criar leitões e a plantar mais milho para eles, e para a capivara com seu imposto verde inevitável. A lenha seca das APP’s precisa ser retirada para economizar outras modalidades de energia, como óleo combustível; essa retirada reduz a sinistralidade do incêndio, mas as proibições gerais caminham no sentido oposto.

Toda lei que precisa de grande aparato policial a impor sua observância pouco resolve: Quanto mais se excluem itens da biosfera como objeto de consumo alimentar ou energético, mais se exigirá de espaço organizado para produzir o equivalente proibido, impactando mais a terra. Precisamos de programas de reabilitação territorial, e projetos elaborados com liberdade, não manietados pela lei. (Programas de reabilitação territorial não são automatizáveis, como os parlamentares parecem pensar).

A maior das leis ambientais foi inscrita no Artigo 22 da Constituição Federal, onde se dispõe que compete à União fixar condições para o exercício das profissões, feito sob solene juramento, cujo cumprimento fiel é contraditoriamente impedido por dispositivos legais inconstitucionais pelo bloqueio que fazem à opção científica: Objetivo maior da lei deve ser atrair a ciência, nunca enxotá-la. O gigante continua adormecido. Acabará dormindo em paz.   
      


Belo Horizonte, 05 de novembro de 2012 

Edézio Texeira de Carvalho




[1] O Tempo; Opinião; 19/11/12; p. 13


Renúncias brasileiras

Renúncias brasileiras [1]
Geocentelha 355A

Teria dito um civil do governo militar que, em relação a possibilidades de aplicação de determinado ato legislativo que se planejava instituir, não temia propriamente por decisões do general de tantas estrelas, mas pelas do guarda da esquina. Sabemos que depois do retorno do dito regime democrático, enquanto se desmontava por revogações de leis o chamado entulho autoritário, simetricamente se votavam leis na área de gestão territorial e ambiental não menos autoritárias. Chegou a meu conhecimento caso estarrecedor de amigo meu do meio rural multado por ter um pássaro que salvara há 20 anos de morte certíssima, filhotíssimo, perdido da mãe em noite de tempestade. A multa começara em R$ 100,00 e quando chegou a R$ 583,00, ele, assustado, pagou esse último valor.

Parece que o Brasil desistiu da corrida espacial pelo incêndio de Alcântara; parece indeciso quanto a pesquisas na Antártica depois de (outro?) incêndio; parece também que hesita no plano nuclear depois do acidente com (velhíssima) central nuclear japonesa, que, a rigor, apenas demonstrou péssima localização de componentes sensíveis a tsunamis de alta probabilidade. Estará também indeciso em relação ao pré-sal?

Ouço rumores de que certa EMBRAPA Internacional que chegara a ser criada foi extinta. Sem conhecer o que deveria da EMBRAPA, tenho-a como um motivo de orgulho do povo brasileiro, ao lado de poucos outros como a EMBRAER, por exemplo. E penso logo em mais uma possível renúncia. A EMBRAPA Internacional talvez pudesse proporcionar a grandes pesquisadores a pesquisa em domínios geográficos que talvez lhes estejam fechados pelas APPs do famigerado Código Florestal. Pesquisar cultivares em margens úmidas, nem pensar, ou só além dos tantos metros da margem onde termina a APP e se tivéssemos fabuloso delta como o do Nilo, em nenhum lugar dele seria possível, tal a esplêndida ramificação dos canais distributários que multiplicariam as APPs, ocupando assim todo o delta. Acima da cota 1.800 m, ainda que com a justificada pretensão de avaliar potenciais agrícolas em climas de altitude, também nem pensar, porque é também APP. “No caso o Brasil não perde tanto”, diria o lorpa da objetividade no dizer de Nélson Rodrigues, “porque a extensão de território brasileiro acima dessa cota é mínima”, como se o conhecimento não valesse mais que certas materialidades.

Saindo da esfera exclusiva da EMBRAPA, pesquisar o que fazer com centenas de crateras de minas desativadas, para quê, se lá no fundo surgiu olho d’água que se transformou em lago, gerando nova APP?

Volto ao ponto inicial porque considero que o pior nem é a renúncia a certos programas cujo desenvolvimento pressupõe o de conhecimentos e tecnologias especiais, que poderiam ser marcas distintivas do Brasil, mas a efetiva proibição de buscá-los, independentemente da aplicabilidade que possam vir a ter. O brado retumbante precisa substituir o sussurro atual.
      


Belo Horizonte, 12/10/2012

Edézio Teixeira de Carvalho
Eng. Geólogo



[1] O Tempo; Opinião, p. 21; 18/10/2012

Terra misteriosa

Terra misteriosa [1]
Geocentelha 354

Lembro aulas de história do padre que sobre a batina vestia capa com ares de toga, e era dado a ironias sobre o que lhe parecia absurdo do conhecimento geográfico da Europa medieval. Imitando-o, ríamos do que diziam do Atlântico chamado Tenebroso, cheio de monstros, e que caía no poente em formidável cascata, levando consigo navegadores que se aventuravam a tentar desbravá-lo, ou que simplesmente se perdiam por lá levados por correntes ou ventos invencíveis.

Hoje confundimos nascente com água e todas as nascentes, não importa sua real natureza geológica, são boazinhas com a água e conosco. Não admitimos casos em que deveríamos considerá-las más, como as das voçorocas, que, à semelhança de agulhas de extração de sangue esquecidas nas veias da terra, levam a água de nossa presença precocemente de volta ao mar. Não há também lugar para maldizer daquelas que, em brejos de águas estagnadas, castanho-avermelhadas, plúmbeas, irisadas, formam doentio paul, de onde essas águas a muito custo escapam quais exsudatos lacrimejantes de furúnculos maltratados. Com Dante (Divina Comédia): "No verão à saúde traz perigo; em vasto plaino o álveo dilatando, forma paul, das infeções amigo.” Com Graciliano (Angústia): “Muitos agora tiritavam, batendo os dentes como porcos caititus, na maleita que a lama da lagoa oferece aos pobres”.

Esquecemo-nos de que as lagoas Pontinas, circundadas de solos fertilíssimos, infernizaram a vida de etruscos, romanos e italianos quase atuais por serem morada predileta do mosquito do Nilo, e também de que as margens molhadas fizeram do Egito a dádiva do Nilo no dizer do sábio grego. Vamos por aí legislando às foiçadas. Já distantes da água condenamos outros territórios. Um dia haverá quem queira desmontar o Cristo, não porque o rebanho que contempla lá de cima não seja todo seu. No vaso fechado a ladeira perigosa vence o topo proibido.

Europa com mais de 3000 anos de história urbana, com cidades debaixo dos calcários, apoiadas nos calcários e dentro dos calcários, não merece ser imitada ... Não sabe ela que os calcários são mais misteriosos e perigosos que os calabouços do Ivan?

Não sabemos também que a história das civilizações é uma história de busca dos acessos, para a Terra Prometida, para El Dorado, para as terras das especiarias, para o ouro da Califórnia. Os famosos acessos, que o colega descreve, para transpor a grande barreira da serra do Mar, e aquele de Paranaguá a Curitiba ou de Curitiba a Paranaguá, qual das duas precisava mais? Feitos foram por anteciparem-se à lei? Leis não podem matar ciência.

Nossa educação ambiental vai por aí, grande parte baseada no que diz a lei dos homens, não a da natureza, nem a de sábios que fizeram história no traço arrojado dos itinerários, ou na imortalização de evidentes nexos causais: Tem quem guarda, prospera quem se arroja, aprende quem experimenta. Coreia? Uma delas passou por aqui há 20 anos! 



Belo Horizonte, 03/09/2012

Edézio Teixeira de Carvalho
Eng. Geólogo



[1] O Tempo; Opinião; 06/09/12; p.23 


Olhares

Olhares Transparentes [1]
Geocentelha 353

Olhos atentos tudo vêem; mentes condicionadas só o que querem. Olhos atentos não são dons naturais, porque em parte significativa essa qualidade é preparada pela condução científica. Foi dito de Ângelo de Sismonda por seu trabalho de apoio à construção do primeiro túnel ferroviário sob os Alpes que “para os sábios as montanhas são transparentes”. O que Sismonda “via” era a organização interna, estrutural, das massas geológicas, aleatoriamente reveladas por sondagens. Compreendida essa estrutura, o acidente geológico tornava-se previsível, evitável, controlável; ele e suas principais consequências, as mortes, diminuíam sensivelmente; do reconhecimento dos operários ganhou a cultura humana a célebre frase por eles então cunhada.

Toda ciência, no caso a geológica, prepara a visão neutra, sem contaminações de motivações efêmeras, sua mais preciosa contribuição para o futuro da humanidade. Viram os geólogos naturais, no início do controle do fogo, de onde vinham o chumbo e outros metais, e criaram a mineração, sem a qual a humanidade não teria saído das cavernas.

Sismonda salvou vidas; outros como ele descobriram ferro, carvão, petróleo e elementos radioativos, que já salvaram muito mais vidas do que uma guerra e alguns acidentes nos levaram. Os geólogos, sobre a terra, assim como os médicos, sobre o ser humano, veem componentes distintos e separados no tempo e no espaço, e têm a possibilidade e o dever de elaborar previsões sobre suas interações. Australianos, chilenos, japoneses, americanos, nas costas do Pacífico e do Índico, têm feito previsões de tsunamis e elaborado esquemas básicos de atitudes preventivas, mas normalmente não operam os sistemas de prevenção. Então, países costeiros serão “surpreendidos” outras vezes por eventos previsíveis, que se repetiram muitas vezes ao longo da história registrada na imprensa, não só no quase invisível registro geológico.   

A visão condicionada vê o que quer, parcialidades, platitudes, impossibilidades definitivas ocultando possibilidades fecundas; mais que isso, costuma arrastar-nos a ver o que não vemos.

O que vejo num topo de morro, dependendo de sua forma particular? O que viram civilizações atentas: Amplas vistas sobre as partes baixas do terreno, salubridade, segurança geotécnica maior que nas encostas. Em cava de mineração desativada vejo oportunidades como acomodar o estéril ou resíduos trazidos da vizinhança para criar áreas planas úteis e necessárias em terreno montanhoso; aproveitar o resultante lago se esta for conveniência local; implantar campos de esportes, aeroclubes e similares. Nas margens de pequenos córregos conforme seu regime; nas de grandes rios conforme seu regime; nas faixas litorâneas conforme sua morfologia e dinâmica. Tudo o que a inteligência humana conceber de melhor, nunca sempre a mesma coisa. Não hesito em acompanhar o apelo de Donald Haney (Geotimes, fev/93): “Acordemos, geólogos!”


   
Belo Horizonte, 24 de julho de 2012

Edézio Teixeira de Carvalho
Eng. Geólogo



[1] O Tempo; Opinião; 11/08/2012; p. 23 (sob o título Olhares transparentes).

Adeus às ilusões?

Adeus às ilusões? [1]
Geocentelha 352

Parece que de repente a hipótese do aquecimento global continuado começa a fazer água. Não me parece tão importante assim termos certeza hoje de que a terra está aquecendo ou esfriando. Sei que a humanidade não tem pronta solução para qualquer hipótese. Aliás a humanidade nunca tem solução sequer tolerável para problemas que inventa. Um exemplo: Onde está a solução da sacola plástica? Tenho certeza absoluta de que não existe, porque, a rigor, o da sacola plástica é problema inventado e problema inventado não tem solução. Por que o problema da sacola plástica é inventado? É inventado porque nenhuma casa comercial, desde que surgiram os grandes supermercados, teve em homenagem à transparência a decisão de cobrar pela sacola. O que aconteceria numa sociedade lúcida? Algumas passeatas e depois a sensatez de verificar se as compras estavam ficando mais caras ou baratas com as sacolas compradas ou levadas de casa. Querer que os supermercados não cobrem pelas sacolas é pedir deles que não tenham transparência. Eles cobrariam pelas sacolas vendidas uma a uma como cobram pelo pão, e o que haveria de mau nisso? Mas cobrarão também, se não cobram uma a uma, pelas sacolas que dão de graça e o freguês desonesto e desatento, por achar que não está pagando, leva logo quatro ou seis no lugar de uma. O supermercado capta o consumo de sacolas estatisticamente, e cobrará estatisticamente. Um imenso problema geológico, podem crer, porque, além de pesar no bolso do desatento freguês, pesa no estoque de sustentabilidade geológica do planeta! Pode o comerciante ser desonesto noutras operações, mas nesta estaria exercendo um direito inquestionável. Qual então seria o cenário de todos os supermercados cobrando pela sacola? O da transparência! Se acho caro não compro, levo de casa, e aí não pago. E aí o consumo cairia, assim como sobreviveria mais o estoque de nossa sustentabilidade geológica, porque cairia o impacto ambiental! E cairia menos a economia popular!

Se não estivermos aquecendo tanto, não teremos de tentar o milagre de resfriar, porque nem teríamos ventilador suficiente. Dediquemo-nos então a resolver problemas concretos, que estão nas nossas mãos. Problemão, não acham, termos muitas cavidades de pedreira e de minas abandonadas? Mas que problema? É mil vezes melhor termos cavidades desses tipos abandonadas, às dezenas, às centenas para que possamos fazer mil coisas extraordinárias com elas que, por um lado não as termos, o que significaria que teríamos de importar o ferro de um mero canivete ou por outro lado declará-las APP, proibidas, imprestáveis, reduzindo a cada dia que passa o território utilizável! Não temos outra coisa a fazer senão choramingarmos por termos buracos de mineração, só pelo mórbido prazer de dizer que não gostamos dela (embora gostemos bem de seus produtos)? Assim não dá! Acabo saindo por aí a perguntar se alguém sabe a última do brasileiro!  

  
  
Belo Horizonte, 17 de julho de 2012

Edézio Teixeira de Carvalho
Eng. Geólogo





[1] O Tempo; O.PINIÃO; 26/07/12; p. 21

Ao cair da chuva

Ao cair da chuva [1]
Geocentelha 351

Ao cair da chuva escrevo desviando-me das sombras da catarata que confio ter dias contados nas mãos da medicina reparadora da natureza, operada pelo único membro dela capaz de corrigir seus defeitos por ações propositadas, conduzidas por lógica comum a todo campo científico. Desvios da constituição normal do corpo humano, mais complexos que a prosaica catarata, são corrigidos no útero habitado por embriões até recentemente refratários a correções oportunas.

O que fazemos ao corpo humano, por que não à terra? Porque aí proibimos a ciência, substituída pelo arbítrio de códigos, no pedestal da ignorância grandes monumentos à arrogância humana; pelo arbítrio também de paradigmas técnicos que, ritualisticamente, expulsam a água de nossa presença tantas vezes sem necessidade. Ouço gotas de chuva pipocando no telhado, e fico satisfeito de saber que ficarão armazenadas em reservatório até que sejam chamadas a amenizar o calor de sol causticante sobre os canteiros da horta. Imagino a chuva que cai no vão inóspito de centenas de milhares de voçorocas do Brasil, veias abertas do solo brasileiro, para tomar logo o rumo do mar aonde chegará em poucos dias.

A seca do Nordeste poderia ser mais amena e a chuva em Teresópolis também, mas como? Todos os rios que morrem no mar nasceram na atual foz e escavaram seus leitos do mar para montante até chegarem às atuais nascentes no coração dos continentes, coração maneira de dizer, porque o afamado Tietê e o caudaloso Amazonas saem de escassas dezenas de quilômetros do mar para empreenderem jornadas de milhares de quilômetros no sentido oposto. E associamos a cada nascente que nutre esses rios e aos inúmeros cursos que para eles convergem a nobre faculdade de sustentar a vida. Na perspectiva do acesso direto à água é verdade, mas é verdade também que a nascente é o portal a partir do qual águas continentais deixam o seguro abrigo no seio geológico da terra para enfrentarem as vicissitudes da vida subaérea, sujeitas à evaporação precoce, à poluição e ao retorno precoce ao mar: As águas que aí vemos estão dizendo-nos adeus! Por que não retardar esse desenlace?

Amenizar os efeitos negativos do excesso de chuvas é capturar no sistema geológico o máximo possível das águas pluviais que caem hoje. Amenizar a seca de amanhã (quem guarda tem) é ter feito isto no tempo das chuvas. Insensata humanidade: Não atrapalhe mais sua própria vida e resolva de vez excluir do clube das “protegidas” as terríveis nascentes das voçorocas. Assim você será mais feliz; compreenderá melhor por que as geociências brasileiras estão de luto pela perda de Aziz, a quem o Congresso perdeu a oportunidade de encomendar minuta coerente para o Código Florestal, e de Grossi Sad, que lhe proporcionou poder contar com parte das terras raras de que tanto precisa. Mais sábia, você partirá para conquistas maiores proporcionadas por imensas possibilidades menos óbvias.



Belo Horizonte, 12 de junho de 2012

Edézio Teixeira de Carvalho
Eng. Geólogo




[1] O Tempo; O.PINIÃO; 21/06/2012; p. 19