A insônia dos outros [1]
Geocentelha 362
Reconstituo fato de infância, anos 50, na casa onde morávamos: No intervalo de novelas, Voz do Brasil, meu pai ouvia o programa na sala; na cozinha a moçada conversava, um sentado à janela, costas para o vazio, sobre muro de pedra seca que apoiava a parede; o restante da casa ficava sobre um porão. Ao acordar pela manhã, e chegar à cozinha, dei com o clarão devido à ruína do muro, levando parede e janela onde estivera assentado o José. Não chovera durante a noite, e o muro ruíra menos carregado do que estivera horas antes. O fato atraiu-me para os processos geológicos. Um deles, estrelado pelo rio e pelo córrego, repetia-se com frequência, o córrego enfurecido com chuvas torrenciais atacava o rio, que, estando baixo, cedia lugar vendo depositar-se à margem um delta semilunar de blocos rochosos, mas quando estava alto, o rio represava o córrego, e este, passada a tempestade, ficava limpo formando remanso de águas transparentes, muito piscoso para lambaris e acarás. Festa para os olhos e emoções da pescaria com anzol mosquitinho.
Em 1980, sábado pela manhã, colhia dados para a dissertação
de mestrado em Ouro Preto, quando vi os movimentos finais do escorregamento de
talude em direção aos fundos da Santa Casa. Por vários dias trabalhamos sob
pressão em comissão algo informal que representava as instituições UFOP, pro Memória
(líder no caso), CPRM e UFMG/IGC, inclusive tendo de contar com a compreensão
da direção da Santa Casa, removendo doentes da ala mais ameaçada. Não fui lá
recentemente, mas, tendo acompanhado por anos o resultado das intervenções de
estabilização, tenho por certo que elas resolveram o problema. Posteriormente a
esse evento, ocorrências diversas provocaram destruição e morte em Ouro Preto,
como em 1997, quando perderam a vida 11 pessoas de uma só família, em área de
Risco III, a mais alta, conforme consta da Carta Geotécnica de Ouro Preto,
elaborada por mim entre 1980 e 1982. No recente acidente de que muitos hão de
lembrar-se, em que perderam a vida dois taxistas, sob escorregamento próximo à
estação rodoviária e Santa Casa, a área estava também classificada como de
Risco III na parte principal.
Já aí por 1989, em trabalho de campo com estagiários, numa
daquelas vilas chamadas São Jorge entre as avenidas Raja Gabaglia e Barão Homem
de Melo, fomos surpreendidos por uma pancada de chuva muito forte e buscamos
abrigo numa casa frágil, onde estava apenas uma senhora idosa. Ao ouvir o ronco
estrepitoso da enxurrada ao fundo, perguntamos-lhe se ela não temia.
Respondeu-nos que naquela hora era fácil sair, mas que passara por muitas
situações parecidas, todavia de madrugada, às vezes no escuro, pela queda da
energia.
Imaginei então as dificuldades para evadir-se de pessoas
como ela, várias, nas pelo menos 5 ou 10 mensagens anuais de aviso, durante a
madrugada, com crianças, e, quem sabe, cadeirantes, no escuro. Vocês
imaginaram? Eu imaginei.
Belo Horizonte, 24 de março de 2013
Edézio Teixeira de Carvalho
Eng.o Geólogo
[1] O Tempo; Opinião; 30/03/2013;
p.21
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