Terra misteriosa [1]
Geocentelha 354
Lembro aulas de história do padre que sobre a batina vestia
capa com ares de toga, e era dado a ironias sobre o que lhe parecia absurdo do
conhecimento geográfico da Europa medieval. Imitando-o, ríamos do que diziam do
Atlântico chamado Tenebroso, cheio de monstros, e que caía no poente em
formidável cascata, levando consigo navegadores que se aventuravam a tentar
desbravá-lo, ou que simplesmente se perdiam por lá levados por correntes ou
ventos invencíveis.
Hoje confundimos nascente com água e todas as nascentes, não
importa sua real natureza geológica, são boazinhas com a água e conosco. Não
admitimos casos em que deveríamos considerá-las más, como as das voçorocas,
que, à semelhança de agulhas de extração de sangue esquecidas nas veias da
terra, levam a água de nossa presença precocemente de volta ao mar. Não há
também lugar para maldizer daquelas que, em brejos de águas estagnadas,
castanho-avermelhadas, plúmbeas, irisadas, formam doentio paul, de onde essas
águas a muito custo escapam quais exsudatos lacrimejantes de furúnculos maltratados.
Com Dante (Divina Comédia): "No verão à saúde traz perigo; em vasto plaino
o álveo dilatando, forma paul, das infeções amigo.” Com Graciliano (Angústia):
“Muitos agora tiritavam, batendo os dentes como porcos caititus, na maleita que
a lama da lagoa oferece aos pobres”.
Esquecemo-nos de que as lagoas Pontinas, circundadas de
solos fertilíssimos, infernizaram a vida de etruscos, romanos e italianos quase
atuais por serem morada predileta do mosquito do Nilo, e também de que as
margens molhadas fizeram do Egito a dádiva do Nilo no dizer do sábio grego.
Vamos por aí legislando às foiçadas. Já distantes da água condenamos outros
territórios. Um dia haverá quem queira desmontar o Cristo, não porque o rebanho
que contempla lá de cima não seja todo seu. No vaso fechado a ladeira perigosa
vence o topo proibido.
Europa com mais de 3000 anos de história urbana, com cidades
debaixo dos calcários, apoiadas nos calcários e dentro dos calcários, não
merece ser imitada ... Não sabe ela que os calcários são mais misteriosos e
perigosos que os calabouços do Ivan?
Não sabemos também que a história das civilizações é uma
história de busca dos acessos, para a Terra Prometida, para El Dorado, para as
terras das especiarias, para o ouro da Califórnia. Os famosos acessos, que o
colega descreve, para transpor a grande barreira da serra do Mar, e aquele de
Paranaguá a Curitiba ou de Curitiba a Paranaguá, qual das duas precisava mais?
Feitos foram por anteciparem-se à lei? Leis não podem matar ciência.
Nossa educação ambiental vai por aí, grande parte baseada no
que diz a lei dos homens, não a da natureza, nem a de sábios que fizeram
história no traço arrojado dos itinerários, ou na imortalização de evidentes
nexos causais: Tem quem guarda, prospera quem se arroja, aprende quem
experimenta. Coreia? Uma delas passou por aqui há 20 anos!
Belo Horizonte, 03/09/2012
Edézio Teixeira de Carvalho
Eng. Geólogo
[1] O Tempo; Opinião; 06/09/12;
p.23
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