Figura: Voçorocas ativas e extintas em Cachoeira do
Campo e voçorocas predominantemente extintas com reativações discretas em São
Brás do Suaçuí, ambas em 2014.
Em
São Brás do Suaçuí, onde estive em 1975 estudando o traçado das Variantes da
Linha do Centro no trecho entre Jeceaba e Barra do Piraí percebi como elas,
impondo o traçado da via urbana principal da cidade, afinal uma rodovia que
liga a região dos Campos das Vertentes à BR-040, determinava um urbanismo
fortemente condicionado. Estão, de minha memória, acentuadamente
renaturalizadas em termos de cobertura vegetal, o que parece a alguns uma
maravilha. Entretanto o território vai de sul a norte e de leste a oeste. Na
parte contida na bacia do Paraopeba, onde está o solo que se encontrava
naqueles imensos anfiteatros abertos pelas “inocentes” nascentes? Assoreia os
cursos d’água a jusante, no mínimo comprometendo a reprodução da ictiofauna;
assoreia reservatórios pequenos como o de rio de Pedras, comprometendo a
geração de energia e reduzindo a segurança contra inundações a jusante, e
grandes como o de Três Marias; assoreia o leito do São Francisco, que vimos
exposto, todo vermelho-amarelo de terras que já estiveram nas grandes bacias
tributárias, até como naquela voçoroquinha que vi em matéria do Globo Rural
logo abaixo da cachoeira Casca Danta no curso principal do São Francisco. Então aquele conjunto de São Brás é uma das
milhares de pernas quebradas, que não foram cuidadas a tempo, do São Francisco,
assim como há os conjuntos do Paraibuna, do Grande, do Doce (amargo doce), do
Jequitinhonha, do Contas, todos eles emissários dos sangrentos rasgos feitos
pelas nascentes das voçorocas.
E
o conjunto de Cachoeira do Campo? Não é diferente essencialmente do de São Brás
e do de Lafaiete, aliás pertencentes a conjuntos geológicos que os geólogos do
mapeamento designam por siglas às vezes inspiradas numa localidade tipo, como
por exemplo o de Cachoeira do Campo, A3b, em que o b é de Bação. Ele
encontra-se numa fase morfogenética que pode comportar um estágio juvenil
(voçorocas ativas descarregando imensas quantidades de solo anualmente) e um
estágio senil, em que a descarga teve sua intensidade muito atenuada. As
voçorocas de Cachoeira do Campo são mais didáticas porque aí convivem as jovens
e as velhas, onde é possível ver e comparar as quantidades de água e solo que
descem: Nas jovens mais água (suja e barro nas precipitações pesadas) e nas
senis quantidades menores de águas que praticamente somem na estação seca e
quase nenhum solo mais. Por que, afinal, tais distinções? É hora de mostrar que
uma voçoroca por processo natural nunca ultrapassa o topo da encosta, a crista
do espigão, às vezes com duas voçorocas opostas, porque a dinâmica do processo
esgotou-se por falta de reservatório de solo poroso, levado por “quem”? Levado
pela nascente que chamo suicida; afinal é ela a suicida, a agente principal dos
processos geológicos exógenos, que, implantada por mau uso do solo numa encosta
de volume limitado de solo original, acaba com ele em décadas ou até milênios,
vá lá. E ele acaba porque (é necessário dizer) é, para todos os efeitos
práticos, considerando a morosidade do processo geológico de geração de solo
novo, que chamamos intemperismo químico, um recurso natural não renovável.
O
sistema geológico do São Francisco funciona desde antes de Casca Danta até o
mar, em cada compartimento da bacia com uma dinâmica própria de cada contexto
geológico.
Em
boa hora o país achou que deveria concentrar em cursos de Geologia conteúdos
até então dispersos para tratar especificamente das competências de uma carreira
que atendesse o campo mineral e as questões ligadas ao campo geoambiental e do
planejamento do uso e ocupação do solo. Por
outro lado, é necessário dizer que o que lei maior concede, lei menor não tira.
Evidentemente não conheço com pormenor os mecanismos pelos quais se estabelecem
os campos cobertos por legislação, mas a Lei 4076 promulgada em 23 de junho de
1962 pelo então Presidente João Goulart, não terá sido revogada para ceder
tratamento superior ao conceito de nascente constante do Código Florestal. O
lamentável conceito, mesmo com os remendos de 2012, manda que a água de
não-nascentes torne precocemente ao mar, levando com ela o solo, não renovável como sabemos, promovendo
desequilíbrios geológicos que podem ocorrer a milhares de quilômetros de onde
ela sai. Enquanto isso os geólogos, formados sob a égide daquela decisão
nacional de 1962, assistem inermes à destruição legalmente comandada do
território pátrio.
Esses
territórios, que perderam milhões de metros cúbicos de solo, e de reservatórios
hidrogeológicos, e que ostentam milhões de hectares de parcelas inúteis, são
recuperáveis: São parcialmente recuperáveis por meio de intervenções de
reabilitação que permitirão a disposição de resíduos inertes (inertes, não
perigosos) que a humanidade ainda não aprendeu a aproveitar, assim como Minas
Gerais, que, com tantas cavidades de mineração desativadas, tão fáceis de
cuidar quanto as voçorocas, por métodos diferentes, e que não aprendeu com o
extraordinário caso de Las Medulas dos espanhóis.
Não
pretendo estender mais este texto, mas acho oportuno adiantar que,
independentemente do uso do solo no meio rural, há uma infinidade de questões
relacionadas à água que devem ser revisadas no Brasil, e que só o serão quando
houver o desbloqueio das leis científicas. E isto se torna ainda muito mais
importante nos meios urbanos, já implantados ou a implantar, e ocorre citar
possibilidades que se abrem, por exemplo, em relação a Cachoeira do Campo, que
me parece predestinada a participar do descongestionamento de Ouro Preto pela
transformação das voçorocas em áreas perfeitamente urbanizáveis e muito mais
seguras que as ladeiras da velha capital. Com efeito, as cidades são segundas
naturezas, podendo partir de situações difíceis de recuperar para a atividade
rural, que paga pouco por unidade de área, em comparação com o meio urbano bem
planejado, que paga muito mais. As cidades devem ser tema de um próximo artigo.
Belo Horizonte, 20 de junho de
2016.
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Edézio Teixeira de Carvalho
Engenheiro Geólogo
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