17 de janeiro de 2017

Contradições inexplicáveis

Contradições inexplicáveis
GC 406 Contradições inexplicáveis

Tento há anos desfazer uma das mais absurdas contradições lógicas que abalam minhas esperanças sobre o futuro do Brasil. Já comparei o comportamento do corpo humano ao do sistema geológico do nosso planeta, sempre com o reconhecimento de que o primeiro é mais complexo. Entretanto deixei de explicitar certas consequências. Por ser mais simples, parece-me a sociedade (des)organizada julgar-se conhecedora plena do segundo a ponto de legislar sobre ele com desenvoltura e insensatez infinitas. Passo então a expor o complemento da comparação iniciada. Uma voçoroca é exatamente como uma perna quebrada; a ela está associada uma forma telúrica de sangramento, uma nascente que chamo tecnogênica.
Embora eu considere a geologia a disciplina científica formalmente mais preparada para a compreensão fenomenológica da voçoroca, muitas áreas do conhecimento podem ter acesso a uma percepção próxima da geológica (física, geografia física, engenharia civil, agronomia, biologia). A perna quebrada é evidentemente tema do médico como a voçoroca o é da geologia, mas o farmacêutico, o enfermeiro, o engenheiro, o motorista, diante da necessidade inevitável, podem imitar o médico na emergência. Continuando com as similaridades lógicas, estando presente o geólogo, opera ele sobre a voçoroca e não o deputado através da lei. Às vezes tremo pensando em quando o Brasil determinará por lei que o médico peça autorização “ambiental” para operar a perna quebrada? Aí, por consequência, colhendo milhões de mortos ou amputados, não é verdade? Está acontecendo exatamente isto no Brasil com as voçorocas. Querem ver?

Figura: Voçorocas ativas e extintas em Cachoeira do Campo e voçorocas predominantemente extintas com reativações discretas em São Brás do Suaçuí, ambas em 2014.

Em São Brás do Suaçuí, onde estive em 1975 estudando o traçado das Variantes da Linha do Centro no trecho entre Jeceaba e Barra do Piraí percebi como elas, impondo o traçado da via urbana principal da cidade, afinal uma rodovia que liga a região dos Campos das Vertentes à BR-040, determinava um urbanismo fortemente condicionado. Estão, de minha memória, acentuadamente renaturalizadas em termos de cobertura vegetal, o que parece a alguns uma maravilha. Entretanto o território vai de sul a norte e de leste a oeste. Na parte contida na bacia do Paraopeba, onde está o solo que se encontrava naqueles imensos anfiteatros abertos pelas “inocentes” nascentes? Assoreia os cursos d’água a jusante, no mínimo comprometendo a reprodução da ictiofauna; assoreia reservatórios pequenos como o de rio de Pedras, comprometendo a geração de energia e reduzindo a segurança contra inundações a jusante, e grandes como o de Três Marias; assoreia o leito do São Francisco, que vimos exposto, todo vermelho-amarelo de terras que já estiveram nas grandes bacias tributárias, até como naquela voçoroquinha que vi em matéria do Globo Rural logo abaixo da cachoeira Casca Danta no curso principal do São Francisco.   Então aquele conjunto de São Brás é uma das milhares de pernas quebradas, que não foram cuidadas a tempo, do São Francisco, assim como há os conjuntos do Paraibuna, do Grande, do Doce (amargo doce), do Jequitinhonha, do Contas, todos eles emissários dos sangrentos rasgos feitos pelas nascentes das voçorocas.
E o conjunto de Cachoeira do Campo? Não é diferente essencialmente do de São Brás e do de Lafaiete, aliás pertencentes a conjuntos geológicos que os geólogos do mapeamento designam por siglas às vezes inspiradas numa localidade tipo, como por exemplo o de Cachoeira do Campo, A3b, em que o b é de Bação. Ele encontra-se numa fase morfogenética que pode comportar um estágio juvenil (voçorocas ativas descarregando imensas quantidades de solo anualmente) e um estágio senil, em que a descarga teve sua intensidade muito atenuada. As voçorocas de Cachoeira do Campo são mais didáticas porque aí convivem as jovens e as velhas, onde é possível ver e comparar as quantidades de água e solo que descem: Nas jovens mais água (suja e barro nas precipitações pesadas) e nas senis quantidades menores de águas que praticamente somem na estação seca e quase nenhum solo mais. Por que, afinal, tais distinções? É hora de mostrar que uma voçoroca por processo natural nunca ultrapassa o topo da encosta, a crista do espigão, às vezes com duas voçorocas opostas, porque a dinâmica do processo esgotou-se por falta de reservatório de solo poroso, levado por “quem”? Levado pela nascente que chamo suicida; afinal é ela a suicida, a agente principal dos processos geológicos exógenos, que, implantada por mau uso do solo numa encosta de volume limitado de solo original, acaba com ele em décadas ou até milênios, vá lá. E ele acaba porque (é necessário dizer) é, para todos os efeitos práticos, considerando a morosidade do processo geológico de geração de solo novo, que chamamos intemperismo químico, um recurso natural não renovável.
O sistema geológico do São Francisco funciona desde antes de Casca Danta até o mar, em cada compartimento da bacia com uma dinâmica própria de cada contexto geológico.
Em boa hora o país achou que deveria concentrar em cursos de Geologia conteúdos até então dispersos para tratar especificamente das competências de uma carreira que atendesse o campo mineral e as questões ligadas ao campo geoambiental e do planejamento do uso e ocupação do solo.  Por outro lado, é necessário dizer que o que lei maior concede, lei menor não tira. Evidentemente não conheço com pormenor os mecanismos pelos quais se estabelecem os campos cobertos por legislação, mas a Lei 4076 promulgada em 23 de junho de 1962 pelo então Presidente João Goulart, não terá sido revogada para ceder tratamento superior ao conceito de nascente constante do Código Florestal. O lamentável conceito, mesmo com os remendos de 2012, manda que a água de não-nascentes torne precocemente ao mar, levando com ela o solo, não renovável como sabemos, promovendo desequilíbrios geológicos que podem ocorrer a milhares de quilômetros de onde ela sai. Enquanto isso os geólogos, formados sob a égide daquela decisão nacional de 1962, assistem inermes à destruição legalmente comandada do território pátrio.
Esses territórios, que perderam milhões de metros cúbicos de solo, e de reservatórios hidrogeológicos, e que ostentam milhões de hectares de parcelas inúteis, são recuperáveis: São parcialmente recuperáveis por meio de intervenções de reabilitação que permitirão a disposição de resíduos inertes (inertes, não perigosos) que a humanidade ainda não aprendeu a aproveitar, assim como Minas Gerais, que, com tantas cavidades de mineração desativadas, tão fáceis de cuidar quanto as voçorocas, por métodos diferentes, e que não aprendeu com o extraordinário caso de Las Medulas dos espanhóis.
Não pretendo estender mais este texto, mas acho oportuno adiantar que, independentemente do uso do solo no meio rural, há uma infinidade de questões relacionadas à água que devem ser revisadas no Brasil, e que só o serão quando houver o desbloqueio das leis científicas. E isto se torna ainda muito mais importante nos meios urbanos, já implantados ou a implantar, e ocorre citar possibilidades que se abrem, por exemplo, em relação a Cachoeira do Campo, que me parece predestinada a participar do descongestionamento de Ouro Preto pela transformação das voçorocas em áreas perfeitamente urbanizáveis e muito mais seguras que as ladeiras da velha capital. Com efeito, as cidades são segundas naturezas, podendo partir de situações difíceis de recuperar para a atividade rural, que paga pouco por unidade de área, em comparação com o meio urbano bem planejado, que paga muito mais. As cidades devem ser tema de um próximo artigo. 

Belo Horizonte, 20 de junho de 2016.
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Edézio Teixeira de Carvalho
Engenheiro Geólogo


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