ESTÓRIA MINHA
COM A ÁGUA
GC 408 Estória
com a água
Passei a
infância em propriedade rural de meu pai à margem esquerda do Gualaxo do Sul,
menor que o Zêzere, afluente do Tejo, mas tão bonito quanto. Fascinava-me o rio
tanto espalhando fumaça invernal acima de sua superfície azul de doer a vista,
quanto transportando verdadeiras toras nas cheias torrenciais, ou, ainda, baixo
ele, espremendo-se desesperado sob o impacto do insignificante córrego do
Moinho crescido até quase a vazão do rio. Pretensioso geólogo natural aos 8
anos, percebi empiricamente por que o córrego numa dessas deixava pedras de até
meio metro de diâmetro formando um delta semilunar pedregulhoso, enquanto toda
a gigantesca carga terrosa seguia rio abaixo (até o mar, pensava eu, porque
salvo esse delta, e alguns outros, as margens, a meu ver, nunca acumulavam
sedimentos). Fiz uma associação: Quando se plantava milho no Inocêncio, e
principalmente no Buraco do Tanque, o córrego fazia essa manifestação de
pujança, e quando a terra era posta a “descansar” o gado acompanhava esse
descanso com cascos afiados escavando a terra. Tinha certeza absoluta, aos 8
anos, de que o descansar não gerava terra nova, e o esgotamento final se
aproximava.
Geólogo
formalizado, aprendi que o solo era uma categoria formada a partir das rochas,
mas numa velocidade insuficiente para substituir a que era levada pelo córrego
roncador e pelo caudaloso rio. Por essa época, aí pelos 10 anos, ouvi de Sá Maria Gabriela que estava para chegar
o dia em que o pai guardaria milho debulhado em garrafa fechada com breu para
mostrar ao filho que estava para nascer. Cheguei a perguntar-lhe o que comeria
ele nesse dia. Por essa época (anos 50 médios) outros adultos preocupavam-se
com alternativas, e lembro-me de ver meu pai preocupado em preservar pequenos
trechos de mata ciliar dos córregos e do próprio Gualaxo, neste com razoável
êxito, que se nota hoje.
A humanidade não
pensa hoje muito diferente. Pensa, por exemplo, que (só) a falta de mata ciliar
resseca rios e córregos, (só) o eucalipto drena os pântanos, (só) a preservação
da nascente preserva a água entre nós.
Antes de
continuar, gostaria de lembrar que temos, 60 anos depois de minhas precoces
confabulações com a água, um território completamente diferente daquele que
assistiu a elas. Nem vou falar das alterações gerais da cobertura vegetal, da
transformação do bioma cerrado, a mais drástica de todas, e da ocupação do
Planalto Central e da Amazônia. Temos
hoje um território onde pontilham pequenos e grandes reservatórios,
principalmente nas áreas urbanizadas, interrompendo o escoamento natural dos
cursos d’água por represamentos sucessivos, desta forma, por exemplo, atraindo
os mosquitos perseguidos no campo pelos mosquiteiros dos anos 50 para o
ambiente urbano, onde o combate a eles parece ter priorizado os vasos de flores
do décimo andar pelos brejos que a lei protege.
Há alguns anos
eu achava que a valorização da mata ciliar estava sendo exagerada na proteção
dos cursos d’água, pela simples razão de que a mata ciliar cobre muito pouco da
bacia contribuinte; hoje alguns estudiosos, talvez mais atentos do que eu,
começam a atribuir a elas efeito oposto ao de proteção, qual seja o de drenagem
por evapotranspiração, aliás um processo participante da equação do regime
hidrológico aplicada a uma dada área continental há muitos milênios conhecida
(P = E + R + I, onde P é precipitação, E evapotranspiração, R escoamento ou run off, I infiltração, num dado
intervalo de tempo).
Independentemente
da presença do eucalipto, áreas conhecidas de mim naquela recuada época
perderam vazão em seus cursos d’água, simplesmente secaram, ou deixaram de ter
um caráter intermitente mais duradouro do que atualmente. Por que? Chove menos?
Não pode ser incluído nessas possibilidades um escoamento precoce, para mim
evidente? É esta, ainda que não exclusiva, a causa. Com efeito, a erosão
laminar não terá perdido menos de 5 cm ou 0,05 m de solo superficial em
encostas de grande inclinação. Na minha referência, em 200 ha, ou 2.000.000 m2,
a perda de solo teria alcançado 2.000.000 X 0,05 m3 de solo, ou
100.000 m3 de solo. Esses 100.000 m3 de solo, com uma
porosidade da ordem de 10 %, poderiam armazenar 10.000 m3 de água,
que entrariam e vazariam várias vezes durante o ano.
Imagem do dia 2: aterro de
resíduos contido por gabião antes de inaugurado, e depois de inaugurado na
primeira chuva torrencial devolvendo em janeiro de 2010 a chuva do natal de
2009.
Pobre água, componente itinerante do
sistema geológico que, diferentemente do jorro que se vê na imagem do dia,
perdeu entrada e saída, e que não tendo entrada não precisa de saída, esse
mesmo componente itinerante que nas terríveis nascentes das voçorocas, sempre
abertas a mando da lei, bate asas precocemente em direção ao mar.
Já que toquei na
lei, se tenho de ficar a 30 metros do córrego, onde plantarei inhame, ele que é
doido por um lençol freático rasinho, levo-lhe a água em baldes, ou numa levada
mais dispendiosa?
Recorro então ao
mestre do Direito, pedindo humildemente ao parlamento que pare de bloquear a
ciência sob o peso insuportável de lei
mal feita: “Não se pode impedir sob
nenhum ângulo que a ciência avance ...” Juiz Carlos Alberto Menezes
Direito, Ministro do Supremo Tribunal
Federal, como candidato indicado para o cargo, dando resposta ao Senador
Antônio Carlos Valadares na sabatina de 29/08/07 na Comissão de Constituição,
Justiça e Cidadania do Senado Federal sobre regulamentação de pesquisas na área
médica.
Recorro também a J. BARREIROS MARTINS Prof.
catedrático emérito jubilado da Uminho
(Universidade do Minho) em seu artigo "Respigos
da situação portuguesa e da situação europeia" ... “Porém, um governo,
seja ele qual for, quando aplica uma pancada (decisão) a um “sistema humano” (o
povo português ou outro), essa pancada não surte o efeito desejado pelos
governantes, pela simples razão da costumada falta de senso e qualidade dessas
acções, algumas delas “contra natura”. Muitas vezes essas acções até vão contra
recomendações dos técnicos e cientistas nomeados pelo próprio governo,
esquecendo-se os governantes que “a Ciência e a Técnica dizem o que é de
prever”. E quando o governo executa o contrário, as leis da Ciência, como são
as da Economia, esmagam todos os súbditos, só escapando os que trabalham na
escuridão, e são muitos…” Diário do Minho em 09-07-2016.
Pois é, e agora digo eu: “Em tudo o que
se ignora inexiste a criação”. Edézio Teixeira de Carvalho (Em iniciação de um
geodependente – a hora de tomar os cordéis, 1999).
Belo Horizonte, 25 de agosto de
2016.
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Edézio Teixeira de Carvalho
Engenheiro Geólogo
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