19 de janeiro de 2017

Estória minha com a água

ESTÓRIA MINHA COM A ÁGUA

GC 408 Estória com a água

Passei a infância em propriedade rural de meu pai à margem esquerda do Gualaxo do Sul, menor que o Zêzere, afluente do Tejo, mas tão bonito quanto. Fascinava-me o rio tanto espalhando fumaça invernal acima de sua superfície azul de doer a vista, quanto transportando verdadeiras toras nas cheias torrenciais, ou, ainda, baixo ele, espremendo-se desesperado sob o impacto do insignificante córrego do Moinho crescido até quase a vazão do rio. Pretensioso geólogo natural aos 8 anos, percebi empiricamente por que o córrego numa dessas deixava pedras de até meio metro de diâmetro formando um delta semilunar pedregulhoso, enquanto toda a gigantesca carga terrosa seguia rio abaixo (até o mar, pensava eu, porque salvo esse delta, e alguns outros, as margens, a meu ver, nunca acumulavam sedimentos). Fiz uma associação: Quando se plantava milho no Inocêncio, e principalmente no Buraco do Tanque, o córrego fazia essa manifestação de pujança, e quando a terra era posta a “descansar” o gado acompanhava esse descanso com cascos afiados escavando a terra. Tinha certeza absoluta, aos 8 anos, de que o descansar não gerava terra nova, e o esgotamento final se aproximava.
Geólogo formalizado, aprendi que o solo era uma categoria formada a partir das rochas, mas numa velocidade insuficiente para substituir a que era levada pelo córrego roncador e pelo caudaloso rio. Por essa época, aí pelos 10 anos, ouvi de Maria Gabriela que estava para chegar o dia em que o pai guardaria milho debulhado em garrafa fechada com breu para mostrar ao filho que estava para nascer. Cheguei a perguntar-lhe o que comeria ele nesse dia. Por essa época (anos 50 médios) outros adultos preocupavam-se com alternativas, e lembro-me de ver meu pai preocupado em preservar pequenos trechos de mata ciliar dos córregos e do próprio Gualaxo, neste com razoável êxito, que se nota hoje.
A humanidade não pensa hoje muito diferente. Pensa, por exemplo, que (só) a falta de mata ciliar resseca rios e córregos, (só) o eucalipto drena os pântanos, (só) a preservação da nascente preserva a água entre nós.
Antes de continuar, gostaria de lembrar que temos, 60 anos depois de minhas precoces confabulações com a água, um território completamente diferente daquele que assistiu a elas. Nem vou falar das alterações gerais da cobertura vegetal, da transformação do bioma cerrado, a mais drástica de todas, e da ocupação do Planalto Central e da Amazônia.  Temos hoje um território onde pontilham pequenos e grandes reservatórios, principalmente nas áreas urbanizadas, interrompendo o escoamento natural dos cursos d’água por represamentos sucessivos, desta forma, por exemplo, atraindo os mosquitos perseguidos no campo pelos mosquiteiros dos anos 50 para o ambiente urbano, onde o combate a eles parece ter priorizado os vasos de flores do décimo andar pelos brejos que a lei protege.
Há alguns anos eu achava que a valorização da mata ciliar estava sendo exagerada na proteção dos cursos d’água, pela simples razão de que a mata ciliar cobre muito pouco da bacia contribuinte; hoje alguns estudiosos, talvez mais atentos do que eu, começam a atribuir a elas efeito oposto ao de proteção, qual seja o de drenagem por evapotranspiração, aliás um processo participante da equação do regime hidrológico aplicada a uma dada área continental há muitos milênios conhecida (P = E + R + I, onde P é precipitação, E evapotranspiração, R escoamento ou run off, I infiltração, num dado intervalo de tempo).
Independentemente da presença do eucalipto, áreas conhecidas de mim naquela recuada época perderam vazão em seus cursos d’água, simplesmente secaram, ou deixaram de ter um caráter intermitente mais duradouro do que atualmente. Por que? Chove menos? Não pode ser incluído nessas possibilidades um escoamento precoce, para mim evidente? É esta, ainda que não exclusiva, a causa. Com efeito, a erosão laminar não terá perdido menos de 5 cm ou 0,05 m de solo superficial em encostas de grande inclinação. Na minha referência, em 200 ha, ou 2.000.000 m2, a perda de solo teria alcançado 2.000.000 X 0,05 m3 de solo, ou 100.000 m3 de solo. Esses 100.000 m3 de solo, com uma porosidade da ordem de 10 %, poderiam armazenar 10.000 m3 de água, que entrariam e vazariam várias vezes durante o ano.
Imagem do dia 2: aterro de resíduos contido por gabião antes de inaugurado, e depois de inaugurado na primeira chuva torrencial devolvendo em janeiro de 2010 a chuva do natal de 2009.

Pobre água, componente itinerante do sistema geológico que, diferentemente do jorro que se vê na imagem do dia, perdeu entrada e saída, e que não tendo entrada não precisa de saída, esse mesmo componente itinerante que nas terríveis nascentes das voçorocas, sempre abertas a mando da lei, bate asas precocemente em direção ao mar.
Já que toquei na lei, se tenho de ficar a 30 metros do córrego, onde plantarei inhame, ele que é doido por um lençol freático rasinho, levo-lhe a água em baldes, ou numa levada mais dispendiosa?
Recorro então ao mestre do Direito, pedindo humildemente ao parlamento que pare de bloquear a ciência sob  o peso insuportável de lei mal feita: “Não se pode impedir sob nenhum ângulo que a ciência avance ...” Juiz Carlos Alberto Menezes Direito,  Ministro do Supremo Tribunal Federal, como candidato indicado para o cargo, dando resposta ao Senador Antônio Carlos Valadares na sabatina de 29/08/07 na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal sobre regulamentação de pesquisas na área médica.

Recorro também a J. BARREIROS MARTINS Prof. catedrático emérito    jubilado da Uminho (Universidade do Minho) em seu artigo "Respigos da situação portuguesa e da situação europeia" ... “Porém, um governo, seja ele qual for, quando aplica uma pancada (decisão) a um “sistema humano” (o povo português ou outro), essa pancada não surte o efeito desejado pelos governantes, pela simples razão da costumada falta de senso e qualidade dessas acções, algumas delas “contra natura”. Muitas vezes essas acções até vão contra recomendações dos técnicos e cientistas nomeados pelo próprio governo, esquecendo-se os governantes que “a Ciência e a Técnica dizem o que é de prever”. E quando o governo executa o contrário, as leis da Ciência, como são as da Economia, esmagam todos os súbditos, só escapando os que trabalham na escuridão, e são muitos…” Diário do Minho em 09-07-2016.

Pois é, e agora digo eu: “Em tudo o que se ignora inexiste a criação”. Edézio Teixeira de Carvalho (Em iniciação de um geodependente – a hora de tomar os cordéis, 1999).


Belo Horizonte, 25 de agosto de 2016.
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Edézio Teixeira de Carvalho
Engenheiro Geólogo


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