23 de janeiro de 2017

Ibéria equipada

Ibéria equipada
                                               GC 413 Ibéria equipada        
Inicio às 3 h de 28/10/2016 da rua Cecílio Sousa, bairro Alto, Lisboa, depois de experimentar, desde 17/10, noites seguidas em Lisboa, Porto, Elvas, Sevilha, o que chamaria silêncio noturno absoluto, de cuja existência já me havia esquecido em Belo Horizonte. Além das teclas ruidosas, ouço a própria respiração. Vem-me fome diabética, repentina, e busco um pão, na mesa da cozinha ao lado, olhando fachadas da viela ao fundo, que desce do bairro Alto para as bandas da marginal do Tejo. Ao tomar o saquinho para tirar o pão, ferem-se-me os ouvidos com o ruído da manipulação do papel seco. Não sei contrastar silêncio com ruído como professor de biologia contemporâneo meu aí pelos anos 80. Então falo de outras coisas dessa península Ibérica transformada nos últimos 38 anos no aeroporto de Lisboa, e seu metro, na Vasco da Gama e nas pontes do Porto, nas autoestradas, casas brancas do Alentejo e Andaluzia, pintadas de novo. O geólogo quer falar da geologia que as sustenta e das estradas que as ligam, não em linguagem técnica, mas circunstancial. Evita falar sobre a estabilização da muralha Fernandina no Porto, terra de arquitetos, geólogos e engenheiros que a construíram e que lhe dão manutenção, fala um pouco das autoestradas e dos seixos rolados de Sevilha, que, mesmo com base em fotos de baixa qualidade, como as tomadas do táxi que não pôde parar junto à muralha, impressionam por toda a cidade pela quantidade e pelo fim a que foram aplicadas.
Imagens do dia: Aplicação de seixos rolados na muralha em sua parte mais antiga, em piso do pátio do edifício da reunião Ibero-Americana (século XIX) e em piso de chuveiro (atual).

 Os seixos da muralha estão no trecho que autores dizem ser “feito de barro com madeira” (?). Na praça de Espanha, o edifício de 1928 que marca a Conferência Iberoamericana, tem o grande pátio extensamente recoberto por seixos claros possivelmente de quartzo leitoso bem rolados, lisos, elipsoidais, e seixos negros de rochas máficas, de minerais de habitus prismático, em desenhos bem concebidos. Um piso de chuveiro na casa da rua Castellar (e não Castelar, também existente, para confusão entre passageiro e taxista), bairro Macarena, de seixos rejuntados com cimento como os das ruas, com as saliências naturais evitando escorregamento e quedas, exatamente como no chuveiro. Finalmente uma camada fina de areia solta de grãos rolados, também lisos como os seixos, à volta dos brinquedos do parque, para evitar que se machuquem nas frequentes quedas as crianças que os usam (diferentes do piso que vi no jardim da praça à frente da igreja do Carmo, na cidade do Porto, de cor róseo-clara e consistência superficial almofadada, lembrando a da cortiça). O uso do barro e dos seixos, da Muralha às paredes das casas de Andaluzia e Alentejo (dizem outros viajantes nos sítios de consulta) constituem característica cultural herdada dos mouros.
A quantidade geologicamente surpreendente desses materiais colocados em obras diversas por centenas de anos, mostra que precocemente acharam usos para eles. Na muralha usou-se o material integralmente; no chuveiro e pisos viários passaram, suponho, o material em peneira grossa, e para o parque das crianças em duas, uma perto de 1 cm  e outra de 3 a 4 mm. Aproveitaram o material passado entre elas para fazer a camada de material liso, bem rolado, para proteger as crianças de arranhões nas quedas frequentes. Uma visão integral de sustentabilidade, desde priscas eras.
Que resta dizer? A quantidade do material parece colossal, embora dele no campo eu tenha visto, do carro em movimento, só as rochas do seu substrato nos desmontes a fogo das estradas, e blocos de mão de rochas claras cuidadosamente postos a mão intensamente na Lisboa-Porto e com mais parcimônia na Andaluzia, para controle de processo erosivo; nas passagens das rodovias nenhum sinal de terraços de seixos rolados, certamente distantes da pista de rolamento, elevada em relação às faixas aluvionares de cursos d’água (ribeiras) a exemplo das existentes entre Beja e Lisboa. O projeto geométrico nessas passagens é sempre arrojado, o que pode ter conduzido a custos construtivos elevados, talvez contando-se com ganhos de funcionalidade e segurança, embora o trânsito de pesados seja muito mais escasso que em nossas rodovias. Assim os jazimentos dos seixos de Sevilha não são vistos, mas estarão por lá. Geólogos naturais, cartagineses, romanos, mouros, tê-los-ão encontrado e proposto seu uso numa visão precoce de sustentabilidade.
De significado para a correlação entre a base física e o uso do solo rural, não há como deixar de perceber a invasão do eucalipto sobre os pinheirais, talvez reduzindo, se fosse o caso, o entusiasmo de Antônio Nobre ao descrevê-los (“Os meus cabelos são os pinheirais sombrios e veias do meu corpo os azulados rios”). São notáveis para quem acaba de fazer um vol d’oiseau rodoviário, com responsabilidade secundária de navegador, as presenças fortes dos sobreiros e oliveiras, além, naturalmente, dos magníficos vinhedos. Com forte presença na Faixa Piritosa (?) entre Sevilha e Beja, a mão humana fazendo longos cercados de pedra, contendo gado (bois, cabras, carneiros) e porcos cinza-negros, imensos, matéria prima de famoso presunto. Às vezes, aparentemente perdida a finalidade do cercado com os muros desfazendo-se, a impressão de que uma função adicional deles era remover o pedregulho grosso do terreno de plantio.
Temperaturas muito altas para a estação, até no Porto, que dispensou umas luvas antigas. Pouca água nas citadas ribeiras. Os 30o da morna Sevilha e os quase tantos nas duas passagens por Lisboa surpreenderam-me. O silêncio e a boa cozinha, esta sem surpresa, com o vinho bom de sempre, a preços inacreditáveis, no nível de qualidade que percebo, cativaram-me.
Não deixe, leitor, de visitar o magnífico Museu Geológico, que devemos a gerações de portugueses, onde vi belos exemplares de Minas e de outros estados nossos.

Belo Horizonte, 04 de outubro de 2016.

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Edézio Teixeira de Carvalho
Engenheiro Geólogo

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