Ibéria equipada
GC
413 Ibéria equipada
Inicio às 3 h de 28/10/2016 da
rua Cecílio Sousa, bairro Alto, Lisboa, depois de experimentar, desde 17/10,
noites seguidas em Lisboa, Porto, Elvas, Sevilha, o que chamaria silêncio
noturno absoluto, de cuja existência já me havia esquecido em Belo Horizonte.
Além das teclas ruidosas, ouço a própria respiração. Vem-me fome diabética,
repentina, e busco um pão, na mesa da cozinha ao lado, olhando fachadas da
viela ao fundo, que desce do bairro Alto para as bandas da marginal do Tejo. Ao
tomar o saquinho para tirar o pão, ferem-se-me os ouvidos com o ruído da
manipulação do papel seco. Não sei contrastar silêncio com ruído como professor
de biologia contemporâneo meu aí pelos anos 80. Então falo de outras coisas dessa
península Ibérica transformada nos últimos 38 anos no aeroporto de Lisboa, e
seu metro, na Vasco da Gama e nas pontes do Porto, nas autoestradas, casas
brancas do Alentejo e Andaluzia, pintadas de novo. O geólogo quer falar da
geologia que as sustenta e das estradas que as ligam, não em linguagem técnica,
mas circunstancial. Evita falar sobre a estabilização da muralha Fernandina no
Porto, terra de arquitetos, geólogos e engenheiros que a construíram e que lhe
dão manutenção, fala um pouco das autoestradas e dos seixos rolados de Sevilha,
que, mesmo com base em fotos de baixa qualidade, como as tomadas do táxi que
não pôde parar junto à muralha, impressionam por toda a cidade pela quantidade
e pelo fim a que foram aplicadas.
Imagens do dia: Aplicação de
seixos rolados na muralha em sua parte mais antiga, em piso do pátio do
edifício da reunião Ibero-Americana (século XIX) e em piso de chuveiro (atual).
Os seixos da muralha estão no trecho que
autores dizem ser “feito de barro com madeira” (?). Na praça de Espanha, o
edifício de 1928 que marca a Conferência Iberoamericana, tem o grande pátio extensamente
recoberto por seixos claros possivelmente de quartzo leitoso bem rolados,
lisos, elipsoidais, e seixos negros de rochas máficas, de minerais de habitus prismático, em desenhos bem
concebidos. Um piso de chuveiro na casa da rua Castellar (e não Castelar,
também existente, para confusão entre passageiro e taxista), bairro Macarena, de
seixos rejuntados com cimento como os das ruas, com as saliências naturais
evitando escorregamento e quedas, exatamente como no chuveiro. Finalmente uma
camada fina de areia solta de grãos rolados, também lisos como os seixos, à
volta dos brinquedos do parque, para evitar que se machuquem nas frequentes
quedas as crianças que os usam (diferentes do piso que vi no jardim da praça à
frente da igreja do Carmo, na cidade do Porto, de cor róseo-clara e
consistência superficial almofadada, lembrando a da cortiça). O uso do barro e
dos seixos, da Muralha às paredes das casas de Andaluzia e Alentejo (dizem
outros viajantes nos sítios de consulta) constituem característica cultural
herdada dos mouros.
A quantidade geologicamente
surpreendente desses materiais colocados em obras diversas por centenas de anos,
mostra que precocemente acharam usos para eles. Na muralha usou-se o material
integralmente; no chuveiro e pisos viários passaram, suponho, o material em
peneira grossa, e para o parque das crianças em duas, uma perto de 1 cm e outra de 3 a 4 mm. Aproveitaram o material
passado entre elas para fazer a camada de material liso, bem rolado, para
proteger as crianças de arranhões nas quedas frequentes. Uma visão integral de
sustentabilidade, desde priscas eras.
Que resta dizer? A quantidade do
material parece colossal, embora dele no campo eu tenha visto, do carro em
movimento, só as rochas do seu substrato nos desmontes a fogo das estradas, e
blocos de mão de rochas claras cuidadosamente postos a mão intensamente na
Lisboa-Porto e com mais parcimônia na Andaluzia, para controle de processo
erosivo; nas passagens das rodovias nenhum sinal de terraços de seixos rolados,
certamente distantes da pista de rolamento, elevada em relação às faixas aluvionares
de cursos d’água (ribeiras) a exemplo das existentes entre Beja e Lisboa. O
projeto geométrico nessas passagens é sempre arrojado, o que pode ter conduzido
a custos construtivos elevados, talvez contando-se com ganhos de funcionalidade
e segurança, embora o trânsito de pesados seja muito mais escasso que em nossas
rodovias. Assim os jazimentos dos seixos de Sevilha não são vistos, mas estarão
por lá. Geólogos naturais, cartagineses, romanos, mouros, tê-los-ão encontrado
e proposto seu uso numa visão precoce de sustentabilidade.
De significado para a correlação
entre a base física e o uso do solo rural, não há como deixar de perceber a
invasão do eucalipto sobre os pinheirais, talvez reduzindo, se fosse o caso, o
entusiasmo de Antônio Nobre ao descrevê-los (“Os meus cabelos são os pinheirais
sombrios e veias do meu corpo os azulados rios”). São notáveis para quem acaba
de fazer um vol d’oiseau rodoviário,
com responsabilidade secundária de navegador, as presenças fortes dos sobreiros
e oliveiras, além, naturalmente, dos magníficos vinhedos. Com forte presença na
Faixa Piritosa (?) entre Sevilha e Beja, a mão humana fazendo longos cercados
de pedra, contendo gado (bois, cabras, carneiros) e porcos cinza-negros,
imensos, matéria prima de famoso presunto. Às vezes, aparentemente perdida a
finalidade do cercado com os muros desfazendo-se, a impressão de que uma função
adicional deles era remover o pedregulho grosso do terreno de plantio.
Temperaturas muito altas para a
estação, até no Porto, que dispensou umas luvas antigas. Pouca água nas citadas
ribeiras. Os 30o da morna Sevilha e os quase tantos nas duas
passagens por Lisboa surpreenderam-me. O silêncio e a boa cozinha, esta sem
surpresa, com o vinho bom de sempre, a preços inacreditáveis, no nível de
qualidade que percebo, cativaram-me.
Não deixe, leitor, de visitar o
magnífico Museu Geológico, que devemos a gerações de portugueses, onde vi belos
exemplares de Minas e de outros estados nossos.
Belo Horizonte, 04 de outubro de
2016.
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Edézio Teixeira de Carvalho
Engenheiro Geólogo
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