23 de janeiro de 2017

O risco geológico e os princípios de gestão

O RISCO GEOLÓGICO E OS PRINCÍPIOS DE GESTÃO

                                                           GC 414 O risco e os princípios de gestão
Conceito e aspectos gerais: Conceitua-se o risco geológico como expectativa de danos ou perdas materiais ou humanas consequentes à ocorrência de processos ou eventos geológicos, naturais ou ativados por intervenção antrópica. Os eventos naturais podem ocorrer sob distintas formas. As teoricamente possíveis, exceto catástrofes cósmicas, podem ser:
·       Acidentes da geodinâmica interna, como vulcões e terremotos.
·       Acidentes da dinâmica externa, como deslizamentos, inundações, abatimentos em áreas cársticas; acidentes de obras vinculados ao desconhecimento da natureza geológica e do seu comportamento; processos de erosão e assoreamento como os movimentados pelas terríveis nascentes associadas a voçorocas. Estes, diferentemente dos acidentes da dinâmica interna, podem ser induzidos ou evitados pelo Homem.
Não obstante se possa falar de cada modalidade de risco individualmente, cada uma pode estar associada a outras por vínculos intermodais mais ou menos claros. O trinômio erosão – assoreamento – inundações pode começar pela erosão e ter nos demais efeitos colaterais. Com efeito, a inundação pode ser causada em parte pelo assoreamento, mas também pelo bloqueio à infiltração nas áreas urbanizadas ou pela redução da capacidade de armazenamento dos terrenos erodidos, devendo ser lembrado que o solo, mais importante fator geológico da sustentabilidade, deve ser  considerado o que de fato é, irrecuperável, ou não renovável, para todos os efeitos práticos. A erosão potencializa duplamente as inundações a jusante. Uma vez provocadas remotamente por erosões, as enchentes que provocam inundações podem também provocar erosões nas barrancas dos cursos d’água, e assoreamento mais a jusante[1].
Apenas com o objetivo de antecipar reflexões com o sentido de gestão, chama-se atenção para a necessidade de distinguir fatores de causas. Por exemplo: A erosão em cabeceiras é fator importante para o processo de assoreamento, porque ela cria uma condição básica para esse processo, qual seja a geração de material cuja acumulação ao longo dos cursos d’água constitui o assoreamento; a causa final do assoreamento, contudo, é a incapacidade de o curso d’água promover a remoção do material aportado ao local considerado em velocidade equivalente à da chegada. Essa incapacidade pode ser natural (por exemplo a falta de declividade natural do leito) ou artificial, por exemplo resultante da construção de uma barragem, criando um reservatório.
Análises de risco: Consideram-se inerentes ao conceito de risco a probabilidade de ocorrência de evento ou processo, e a intensidade do dano associado. Para uma mesma modalidade de risco, probabilidades podem ser altas e danos baixos e vice-versa. Alguns autores (ex. Augusto Filho et all., 1.990)  têm proposto resolver a questão da classificação da intensidade ou grau do risco mediante a consideração de que o risco R pode ser avaliado por equação do tipo R = P x D, onde P é a Probabilidade da ocorrência de evento ou processo (consequente ou não ao impacto de determinada intervenção) e D o Dano consequente. O desenvolvimento desta questão escapa ao objetivo no momento, assim como sobre o sequenciamento dos estudos de risco, aqui apenas citados com seus conceitos básicos:
·       Previsão: Reconhecimento de possibilidades com base em conhecimento geral.
·       Predição: Estabelecimento do potencial formalmente quantificado por análise de risco, terminando por uma declaração concreta.
·       Prevenção: Estabelecimento de medidas preventivas através de intervenções físicas ou de ordenamentos apropriados. Podem ser obras de contenção destinadas a evitar deslizamentos, ou medidas do tipo ordenamento territorial, proibindo a urbanização em áreas expostas ao risco.
·        Controle: Conjunto de medidas que objetivem reduzir ou atenuar as perdas materiais e pessoais através de assistência e socorro  como são comuns as preparadas por órgãos de defesa civil.

Para concluir este ponto sobre a gestão do risco convém estabelecer posições naturais das categorias de atores que dela participam:
Poder público: Posição de maior responsabilidade por ser a categoria que cobre a questão idealmente dos pontos de vista conceitual e da geografia do risco. É responsável pela educação instrumentalizante da população, categoria  atingida, que levanta previsões, bem ou mal fundamentadas. O conhecimento geográfico faz do poder público o responsável pelo nivelamento das ações com base no princípio do vaso fechado (diz tal princípio que se se restringe a ocupação de dada área pela presença de fatores de risco, deve-se estar ciente de que áreas alternativas serão buscadas, eventualmente com risco maior, mas de modalidade menos visível). Há exemplo fácil de compreender: Áreas cársticas são frequentemente mais rejeitadas pelo poder público face ao risco de abatimentos que encostas de estabilidade aparente ou duvidosa; entretanto não há registro de perdas de vidas humanas em abatimentos cársticos no Brasil, enquanto há quantidade imensa de registros nas encostas de alta declividade, que se contam às dezenas de milhares se recuarmos um século na contagem.
Empreendedor: Gera o produto moradia. Na gestão do risco tem sobre os demais a vantagem da convivência continuada com o objeto especial da gestão, no caso a área que lhe pertença. É o que opta, orientado por tendências do mercado, pelo padrão e modelo de assentamento, embora devendo obediência à legislação geral e local. Em tese é o ator que pode deixar de adquirir um terreno quando, por sua experiência, não estiver de acordo com o modelo de assentamento vigente para a área;
Técnico, pesquisador, consultor: Ator de maior responsabilidade no processo de criação do desenvolvimento científico e tecnológico. Se estiver no poder público atuante na área deverá estar sempre reavaliando os procedimentos estabelecidos. Como consultor, tem o dever incompartilhável de usar os casos em que atue como objetos de avanço do conhecimento, mesmo diante de resistências naturais do agente público, que tem a dificílima missão de ser a um tempo guardião da lei na sua letra, mas permanente perscrutador das sutilezas de seus significados e fundamentos;
Proprietário, morador, usuário: Tem direitos perante os demais atores, mas também o dever perante familiares e a sociedade, de buscar informações para fazer a boa escolha e promover o bom uso do imóvel, e o de não esconder deficiências que descubra durante esse uso. 

Cartografia do risco: Intervenções antrópicas costumam potencializar ocorrências previsíveis, ou torná-las menos prováveis. Não é, portanto, a rigor, cartografável a inteira caracterização do risco relacionado a processos que dependam de deflagração antrópica em suas distintas modalidades, intensidades e muito menos em suas distintas dinâmicas, porque ações deflagradoras podem variar muito em intensidade, natureza e nos cuidados que possam ou não acompanhá-las. São, entretanto, cartografáveis potenciais inerentes à constituição geológica dos terrenos, a partir dos seus fatores predisponentes, e a geografia das áreas expostas a processos ou eventos originados alhures.

Conclui-se do exposto que será o mapa de risco, instrumento de apoio à Gestão regional, um mapa indicador de predisposição, aviso fundamentado de possibilidades realizáveis. Não é recomendável ir além do referido conteúdo em documentos de orientação geral à Gestão, porque isto transmitiria, mediante mecanismos psicológicos de geração de confiança, uma falsa expectativa de que ela, a Gestão, tem tudo sob controle, quando o nível de conhecimento fatual proporcionado pelas escalas próprias com que ela trabalha não permitem passar em regra da generalidade, o que já é muito bom, quando bem feito. Além desse ponto haverá de ir a Gestão na avaliação do risco a que estará submetido empreendimento em estudo, para o qual o mapa oferece um pano de fundo que em geral o empreendimento isolado não tem como produzir.
Na solução que aqui se recomenda a informação sobre o risco não é artificialmente quantificada, o que tenderia a fazer dela declaração vazia, exigência de fé. Ao contrário, a informação, podendo comportar aperfeiçoamentos cartográficos, é apresentada de modo a vincular as modalidades e onde possível a intensidade do risco aos fatores geológicos presentes e determinantes dessas modalidades e intensidade, sempre sem perder de vista o usuário as modalidades de solicitações que o empreendedor tiver em mente.
A cartografia do risco geológico deve sempre evitar geração de desenho autônomo, cartograficamente, que substitua ou esconda as fronteiras geológicas que a escala comporte, porque esta solução corta vínculos essenciais entre modalidade e intensidade do risco e características essenciais das entidades geológicas a que ele está associado. 
É importante o que segue: o conceito de risco é abstrato enquanto não for percebido como possibilidade real. Antes da catástrofe do Índico no natal de 2004, ninguém que pudesse decidir em nome da Gestão pensava na possibilidade de tamanho acidente. Se entretanto houvesse quem pensasse e pudesse agir em nome da Gestão, esse alguém teria incluído nas ordenações urbanísticas declaração de não urbanizáveis para todas as áreas situadas abaixo da cota 20, por exemplo, e com esta simples, mas politicamente quase impraticável medida, poderia ter salvo 200.000 pessoas. 
Na cartografia do risco devem ser observadas questões de lógica pura. Áreas litorâneas do Indico e Pacífico devem ser consideradas em risco de posição em relação aos tsunamis para altitudes da ordem de 20 metros acima da maré alta. Áreas situadas em regiões vulcânicas devem ser consideradas de risco, se não para vedar a ocupação, pelo menos para o controle dos efeitos. Áreas ribeirinhas são áreas de risco e assim devem ser tratadas pela Gestão conforme a posição ao longo do curso.
Imagem do dia: Convergência de três episódios de efetivação de riscos geológicos em épocas diferentes, comentados no texto.

Finalmente, mas não menos importante: A imagem do dia acima mostra a região da foz do Santo Antônio (quem não tenha a imagem aponte em seu computador para Naque-MG no Google Earth, por exemplo). Verá o Santo Antônio sensivelmente assoreado (abundante areia branca nas faixas marginais). Verá o rio Doce atingido por fenômeno recente transportando lama originada do acidente da mina da SAMARCO.
 São casos de efetivação do risco nas modalidades erosão regional na bacia do Santo Antônio e acidente de obra em Mariana. Não é só. Preste atenção o leitor à morfologia das colinas à volta de Naque: Verá que muitas delas têm formato côncavo em vez de convexo. Esse formato côncavo é semelhante ao de colinas de Cachoeira do Campo, a diferença estando em pormenores dos solos locais do Complexo de Bação e das rochas de complexos semelhantes do vale do rio Doce. Onde o interesse maior da lição? Uma área passou há tempos por processo semelhante ao de Cachoeira, não compreendido, e portanto não contido; as nascentes, no entorno de Naque, por serem nascentes suicidas, extinguiram-se depois de levarem para o mar o solo local, seu aconchegante reservatório, assim como estão as de Cachoeira caminanhando para o mesmo fim, agora não por falta de compreensão da população atual mas por culpa da legislação que fere de morte a terra afastando dela os especialistas que poderiam, quais médicos do sistema geológico, interromper o processo destrutivo e reabilitar onde possível o território destruído.


Belo Horizonte, 17 de novembro de 2016.

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Edézio Teixeira de Carvalho
Engenheiro Geólogo


[1] Forma extremamente eficaz de provocar inundações é o bloqueio à infiltração promovido pelas cidades atuais ao qual se soma a transferência do reservatório geológico através do transporte do bota-fora para área distante de onde é escavado.

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