20 de janeiro de 2017

O repto do geólogo

O REPTO DO GEÓLOGO
GC 411 O repto do geólogo

Convivo com algumas frentes do campo geológico que se projetam sobre as ciências parcelares da matéria (física, química, biologia) que formam a infraestrutura científica para a superestrutura geológica. Movimentaram-se no país leis de ordenamento territorial no sentido de conferir ao território critérios de gestão adequados à preservação da sustentabilidade natural. É o Código Florestal a principal dessas leis. Não pensaram os membros do poder legiferante que o resultado poderia ser o que vemos, na imagem do dia. Nela vê-se campo de voçorocas em Cachoeira do Campo em 04/05/2016. Em 2002 a imagem é semelhante, mas, para quem tem olhos de ver, ainda menos desenvolvida, mais intensa, com os leitos dos córregos saindo lamacentos das nascentes tecnogênicas. Tratando-se essas formas tecnogênicas de conformações doentias do território, é justificado compará-las com as doenças do corpo humano, em relação às quais que faz a sociedade culta senão chamar o médico?

Imagem do dia: À esquerda pequeno conjunto de voçorocas em Cachoeira do Campo. Isoladamente parece grande, mas em verdade é pequeno diante do campo de voçorocas de que faz parte. Ele é apenas o contido no retângulo amarelo. A imagem é de 04/05/2016. No campo maior veem-se outras grandes voçorocas ativas e outras grandes voçorocas inativas ou em fase de inativação. Somando tudo podemos ter até 60% da área de solo perdido, note o leitor que permanentemente, definitivamente, porque o solo é o principal recurso geológico da sustentabilidade, e não renovável. Destruição territorial determinada por lei, eis a verdade.
Seria de perguntar por que essas feições continuam lá, como chagas territoriais, quando já teriam de estar curadas. Afinal, não fosse a liberdade de intervenção impedida pela Lei, teria ela consolidado o conhecimento empírico nos casos simples e o técnico-científico adequado teria alcançado o cidadão comum, esse mesmo que sabe das variadas doenças do corpo humano e das formas de tratá-las, porque o ato frequente gera exemplos, enquanto sua proibição não gera exemplos.
Desenvolvi forma de reabilitar a voçoroca a partir da reflexão; apliquei-a a uma voçoroca nascente na encosta a montante do que era o estacionamento do ICB, a poucos metros da Reitoria da UFMG (agradeço à Pro Reitoria de Planejamento e Prefeitura da UFMG, por receberem o projeto e aplicarem as intervenções que o integravam em 1989). Voçoroca nascente, seu desenvolvimento não alcançara o lençol freático, inexistindo, por falta de nascente, impedimento legal quanto à intervenção. Fiquei exultante com o resultado, pensando que haveria uma corrida nacional pela inovadora forma de reabilitação. Estava enganado, mas cerca de 5 anos mais tarde, em voçoroca de Contagem, contando com a clarividência da autoridade local, foi implantado o projeto de reabilitação de voçoroca clássica, com a famigerada nascente ao fundo. A intervenção, coroada de êxito, atraiu a atenção do geólogo Álvaro Rodrigues dos Santos de São Paulo, que o publicou em um de seus livros[1]. Mais uma vez pensava que a inovação triunfaria. Estava de novo enganado. Até hoje continua o Brasil assim: Doença do corpo humano? Chame-se o médico. Doença territorial, que teve por consequência o surgimento de nascente? Afaste-se o geólogo!
Vimos há um ano o solo que sai da imagem do dia no leito raso do São Francisco, cuja baixa vazão atual é atribuída à falta de chuvas, mas razão tão forte, senão maior, está na perda de solo levado pelas voçorocas intocáveis por estarem associadas a nascentes, que, diferentemente das naturais, são problemas graves de degradação do solo levando água precocemente ao mar, e com ela o solo, principal fator geológico da sustentabilidade, que guarda a água, sustenta a flora, alimenta a fauna.
Certamente por ignorância parcial minha, da evolução do Código Florestal, considero que não se baseia ele em nada que se poderia chamar de constitutivo, de modo que, embora fácil de compreender seu zoneamento, ele agrupa zonas que deveriam estar separadas, e separa zonas que talvez merecessem estar agrupadas. Em exemplo do primeiro caso, como não separar as margens de um córrego de vazão de base 1 litro/s de um ribeirão de vazão maior que 1.000 l/s, e de um rio de 100.000 l/s? Deixo ao leitor a reflexão que poderá levá-lo à compreensão autônoma, mas digo que o afastamento de um plantio de inhame (p. ex.) além de 30 metros da margem do córrego pode colocar o inhame a exigir irrigação que custe tempo e dinheiro de outra forma desnecessários. Lembro ainda que um dos mais produzidos cereais, o arroz, no Sudeste Asiático, é plantado dentro d’água! Separação que chegou a ser feita ou tolerada é a que deveria ser feita entre Campo e Cidade. Esta é segunda natureza muito especial, construída pelo Homem, podendo ser implantada, dependendo de aspectos físicos e culturais da região, sobre palafitas, flutuantes como em cidades holandesas, ou em ilhas oceânicas artificiais, criadas com a areia do deserto.
Vou ao caso mais absurdo da legislação de ordenamento territorial. Trata-se do conceito de nascente associada a voçoroca até 2.012, e depois da descaracterização dessa modalidade, a manutenção da exigência de delimitação de APP em torno do olho d’água do que seria o centro da nascente. Em qualquer dos casos há de considerar-se aí a existência de foco doentio do terreno local, algo como um furúnculo territorial. Vamos agora a mais uma analogia com o corpo humano: Esse foco territorial doentio é como uma chaga no corpo humano, de maior ou menor gravidade. Quanto a esta, como reage a sociedade culta? Submete o caso ao médico. Quanto ao foco de erosão da voçoroca nascente ou evoluída, a sociedade nada faz por existir ali uma APP. Assim não poderá o profissional aproximar-se da doença territorial para tratá-la, como é chamado a agir o médico no caso da enfermidade humana.
Concluo: Lei impede tratamento oportuno, devido e urgente das feridas territoriais. Isto significa que nas voçorocas, que vemos às centenas de milhares pelo país, a água retorna precocemente ao mar e, não fosse desastre ambiental bastante, ela o faz arrastando milhões de toneladas de terra, que armazenariam em seu local de formação muita água, que faltará, cada vez mais, à vazão de base de rios como o São Francisco, porque o solo, lembrem-se os legisladores, é recurso natural não renovável (e que, pasmemos juntos, no fundo de um rio, de uma represa, ou do pantanal, ele toma o lugar da água). Um dia ele acaba e sem ele a chuva escoa instantaneamente, muitas vezes sendo esta e não a escassez de chuva a principal explicação de rios secos.
Falamos, portanto, de lei claramente inconstitucional, a merecer a ação das associações científicas da área, com apoio da OAB, CONFEA e CREAs, dos sindicatos profissionais e das instituições de ensino, que veem seus ex-alunos impedidos de exercer ensinamentos que elas lhes proporcionaram para que possam pensar as feridas da Terra. Dano maior ainda pode-se ler em GC 367 Sem exemplos.
Estou certo de que, se provocada oportunamente pela sociedade, a ilustre ministra, com sua notória sensibilidade, socorrerá a terra que a viu nascer, pautando a matéria como ADIN para decisão do STF.

Belo Horizonte, 26 de setembro de 2016.

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Edézio Teixeira de Carvalho
Engenheiro Geólogo


[1] CARVALHO, E.T. (2002). Reabilitação de uma boçoroca em Contagem – MG: In: Santos, A.R., Geologia de Engenharia – Conceitos, método e prática, Caso 5, p. 51-55. ABGE/IPT, 222pp. São Paulo, SP.

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