O REPTO DO GEÓLOGO
GC 411 O repto
do geólogo
Convivo com
algumas frentes do campo geológico que se projetam sobre as ciências parcelares
da matéria (física, química, biologia) que formam a infraestrutura científica
para a superestrutura geológica. Movimentaram-se no país leis de ordenamento
territorial no sentido de conferir ao território critérios de gestão adequados
à preservação da sustentabilidade natural. É o Código Florestal a principal
dessas leis. Não pensaram os membros do poder legiferante que o resultado
poderia ser o que vemos, na imagem do dia. Nela vê-se campo de voçorocas em
Cachoeira do Campo em 04/05/2016. Em 2002 a imagem é semelhante, mas, para quem
tem olhos de ver, ainda menos desenvolvida, mais intensa, com os leitos dos
córregos saindo lamacentos das nascentes tecnogênicas. Tratando-se essas formas
tecnogênicas de conformações doentias do território, é justificado compará-las
com as doenças do corpo humano, em relação às quais que faz a sociedade culta
senão chamar o médico?
Imagem do dia: À esquerda pequeno conjunto de voçorocas em Cachoeira
do Campo. Isoladamente parece grande, mas em verdade é pequeno diante do campo
de voçorocas de que faz parte. Ele é apenas o contido no retângulo amarelo. A
imagem é de 04/05/2016. No campo maior veem-se outras grandes voçorocas ativas
e outras grandes voçorocas inativas ou em fase de inativação. Somando tudo
podemos ter até 60% da área de solo perdido, note o leitor que permanentemente,
definitivamente, porque o solo é o principal recurso geológico da
sustentabilidade, e não renovável. Destruição territorial determinada por lei,
eis a verdade.
Seria de
perguntar por que essas feições continuam lá, como chagas territoriais, quando
já teriam de estar curadas. Afinal, não fosse a liberdade de intervenção impedida
pela Lei, teria ela consolidado o conhecimento empírico nos casos simples e o
técnico-científico adequado teria alcançado o cidadão comum, esse mesmo que sabe
das variadas doenças do corpo humano e das formas de tratá-las, porque o ato
frequente gera exemplos, enquanto sua proibição não gera exemplos.
Desenvolvi forma
de reabilitar a voçoroca a partir da reflexão; apliquei-a a uma voçoroca
nascente na encosta a montante do que era o estacionamento do ICB, a poucos
metros da Reitoria da UFMG (agradeço à Pro Reitoria de Planejamento e
Prefeitura da UFMG, por receberem o projeto e aplicarem as intervenções que o
integravam em 1989). Voçoroca nascente, seu desenvolvimento não alcançara o
lençol freático, inexistindo, por falta de nascente, impedimento legal quanto à
intervenção. Fiquei exultante com o resultado, pensando que haveria uma corrida
nacional pela inovadora forma de reabilitação. Estava enganado, mas cerca de 5
anos mais tarde, em voçoroca de Contagem, contando com a clarividência da
autoridade local, foi implantado o projeto de reabilitação de voçoroca clássica,
com a famigerada nascente ao fundo. A intervenção, coroada de êxito, atraiu a
atenção do geólogo Álvaro Rodrigues dos Santos de São Paulo, que o publicou em
um de seus livros[1].
Mais uma vez pensava que a inovação triunfaria. Estava de novo enganado. Até
hoje continua o Brasil assim: Doença do corpo humano? Chame-se o médico. Doença
territorial, que teve por consequência o surgimento de nascente? Afaste-se o
geólogo!
Vimos há um ano
o solo que sai da imagem do dia no leito raso do São Francisco, cuja baixa
vazão atual é atribuída à falta de chuvas, mas razão tão forte, senão maior,
está na perda de solo levado pelas voçorocas intocáveis por estarem associadas
a nascentes, que, diferentemente das naturais, são problemas graves de
degradação do solo levando água precocemente ao mar, e com ela o solo,
principal fator geológico da sustentabilidade, que guarda a água, sustenta a
flora, alimenta a fauna.
Certamente por
ignorância parcial minha, da evolução do Código Florestal, considero que não se
baseia ele em nada que se poderia chamar de constitutivo, de modo que, embora
fácil de compreender seu zoneamento, ele agrupa zonas que deveriam estar
separadas, e separa zonas que talvez merecessem estar agrupadas. Em exemplo do
primeiro caso, como não separar as margens de um córrego de vazão de base 1
litro/s de um ribeirão de vazão maior que 1.000 l/s, e de um rio de 100.000
l/s? Deixo ao leitor a reflexão que poderá levá-lo à compreensão autônoma, mas
digo que o afastamento de um plantio de inhame (p. ex.) além de 30 metros da margem
do córrego pode colocar o inhame a exigir irrigação que custe tempo e dinheiro
de outra forma desnecessários. Lembro ainda que um dos mais produzidos cereais,
o arroz, no Sudeste Asiático, é plantado dentro d’água! Separação que chegou a
ser feita ou tolerada é a que deveria ser feita entre Campo e Cidade. Esta é
segunda natureza muito especial, construída pelo Homem, podendo ser implantada,
dependendo de aspectos físicos e culturais da região, sobre palafitas,
flutuantes como em cidades holandesas, ou em ilhas oceânicas artificiais,
criadas com a areia do deserto.
Vou ao caso mais
absurdo da legislação de ordenamento territorial. Trata-se do conceito de
nascente associada a voçoroca até 2.012, e depois da descaracterização dessa
modalidade, a manutenção da exigência de delimitação de APP em torno do olho
d’água do que seria o centro da nascente. Em qualquer dos casos há de
considerar-se aí a existência de foco doentio do terreno local, algo como um furúnculo
territorial. Vamos agora a mais uma analogia com o corpo humano: Esse foco
territorial doentio é como uma chaga no corpo humano, de maior ou menor
gravidade. Quanto a esta, como reage a sociedade culta? Submete o caso ao
médico. Quanto ao foco de erosão da voçoroca nascente ou evoluída, a sociedade
nada faz por existir ali uma APP. Assim não poderá o profissional aproximar-se
da doença territorial para tratá-la, como é chamado a agir o médico no caso da
enfermidade humana.
Concluo: Lei
impede tratamento oportuno, devido e urgente das feridas territoriais. Isto
significa que nas voçorocas, que vemos às centenas de milhares pelo país, a
água retorna precocemente ao mar e, não fosse desastre ambiental bastante, ela
o faz arrastando milhões de toneladas de terra, que armazenariam em seu local
de formação muita água, que faltará, cada vez mais, à vazão de base de rios
como o São Francisco, porque o solo, lembrem-se os legisladores, é recurso
natural não renovável (e que, pasmemos juntos, no fundo de um rio, de uma
represa, ou do pantanal, ele toma o lugar da água). Um dia ele acaba e sem ele a chuva escoa instantaneamente, muitas
vezes sendo esta e não a escassez de chuva a principal explicação de rios
secos.
Falamos,
portanto, de lei claramente inconstitucional, a merecer a ação das associações
científicas da área, com apoio da OAB, CONFEA e CREAs, dos sindicatos
profissionais e das instituições de ensino, que veem seus ex-alunos impedidos
de exercer ensinamentos que elas lhes proporcionaram para que possam pensar as
feridas da Terra. Dano maior ainda pode-se ler em GC 367 Sem exemplos.
Estou certo de
que, se provocada oportunamente pela sociedade, a ilustre ministra, com sua
notória sensibilidade, socorrerá a terra que a viu nascer, pautando a matéria
como ADIN para decisão do STF.
Belo Horizonte, 26 de setembro de
2016.
__________________________
Edézio Teixeira de Carvalho
Engenheiro Geólogo
[1] CARVALHO, E.T. (2002). Reabilitação de uma boçoroca em
Contagem – MG: In: Santos, A.R., Geologia de Engenharia – Conceitos, método e
prática, Caso 5, p. 51-55. ABGE/IPT, 222pp. São Paulo, SP.
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