O SÃO FRANCISCO
E O DANÚBIO
GC 409 SÃO
FRANCISCO E DANÚBIO
Por idos de
setembro nos idos dos baixos anos 50, Zé Bento, Dendéu e Mário, entre
por-do-sol e escurecer, pela altura da novela de rádio tocado a roda Pelton, picavam fogo no dorso do elefante, pode-se dizer exatamente pelo fio do
lombo da grande encosta da margem direita do Gualaxo, exatamente como o perfil
de elefante deitado. Surpreendente a capacidade de estender simultaneamente linha
de fogo contínua pela crista de mais de quilômetro de extensão. Do lado de cá,
diante das sombras e fumaças, caíam resíduos de folhas leves de capim queimado,
enquanto na novela o tiroteio prosseguia; amanhã as cinzas marcarão os rastros
dos que cuidarão das vacas e bezerros.
O Gualaxo (i guaraxuê, ou o poço do caburé
quebrado, obtido de autor neste momento não lembrado) de setembro era azul
marinho, nas vésperas de receber enxurradas encorpadas pelos sulcos dos arados,
e tornar-se emissário barrento da erosão que antecedia o florescer do milho,
que deveria estar capinado até 22 de dezembro, do contrário, segundo a tradição
local, o Tomé passaria pela roça, e
era prejuízo cer-to. Hoje a margem direita tem biotitagnaisse mais exposto que
em 1950, coqueiros, palmito, e mata secundá-ria. Sem moradores não mais produz
um grão de milho (profecia realizada de Sá Maria Gabriela?). Hoje rio mais
magro e mais limpo.
O que é o São
Francisco senão uma multidão de gualaxos? Vejamos numa imagem do dia comparação de débitos entre o Tocantins e o São
Francisco. Não sabendo a origem, nem tendo dados com-parativos, não sei se O
São Francisco é, de fato, tão mesquinho.
Vamos,
entretanto, por outro caminho, porque urge falar um pouco de outras formas de
comparação. A famigerada caixa d’água do Brasil, que, por outras razões, chamei
de toda rota, (numa visão geograficamente mais larga) abastece o rio Grande, e,
portanto, o Prata, o Paraíba do Sul, o Doce, O Mucuri, o Jequitinhonha, o
Contas e, salvo algum esquecimento, o próprio São Francisco. Se o dado
comparativo acima está correto, pelo menos em ordem de grandeza, seria uma
razão a mais para justificar a posição contrária à transposição construída e
divulgada pelo Projeto Manuelzão. Pessoalmente sempre considerei transposições
uma medida complicada, não só por seu impacto ambiental mais visível, mas,
principalmente por um direito fundamental do cidadão residente na parte
atingida pela transposição, portanto a jusante do ponto de derivação: é um
efeito de sentido territorial, quase tanto quanto a tomada do próprio
território. Outro efeito que em certo momento apontei, já começou a
multiplicar-se. Com efeito, transposição tornou-se algo juridicamente
admissível, quando deveria ser cláusula pétrea da constituição territorial
descrita em constituição das nações. Já pensaram se um país das cabeceiras do
Amazonas resolve fazer uma grande transposição para o Pacífico com o fim de
produzir algumas Cubatões de energia elétrica?
Antes de saltar
para uma comparação europeia, digo que uma das maiores surpresas que tive foi
presenciar uma cheia do Tejo em 1979, que fez o rio, de porte semelhante ao
Doce, na altura de Colatina alcançar largura de nada menos que 70 quilômetros
na região chamada Ribatejo, a montante de Lisboa. (Lembro-me, a propósito, de
que em comentários a respeito um colega meu, de lá, bem humorado, disse: “Não
se assuste, porque temos outros dados amazônicos; afinal, não sabes que Cascais
é o ponto em que a ribeira de Atrozela se une ao Tejo para formar o Atlântico?”.
Belo Horizonte, mesmo não sendo
ribeirinha direta do São Francisco, é a única capital da bacia, e, com a Região
Metropolitana, a maior concentração populacional dela. O Danúbio é rio de
muitas capitais, que tem, além de Viena, Bratislava, Budapeste, Belgrado, não
contada Bucareste, ainda na bacia, embora não ribeirinha.
Acho que esta é a grande diferença entre
o São Francisco e o Danúbio. Com efeito, é como se a jusante de Viena, próxima
da cabeceira como Belo Horizonte, não houvesse mais centros urbanos de
populações equivalentes a impor demandas e sediar a nucleação de políticas
estaduais de desenvolvimento da bacia. Lá, além dessas capitais, há países e
não estados.
Diante de tal contexto político, as
diferenças físicas, certamente importantes (geologia, clima, com cheias de
degelo dentre outras diferenças), não são relevantes. Esse mundo físico oferece
até similaridades, como recente impacto de ruptura no sul da Hungria de
barragem de rejeito de mina de alumínio, levando contaminantes ao baixo curso
do delta, onde é preservada a luxuriante mata de um patrimônio cultural da
Humanidade. A ocupação humana é também incomparável, com nada menos que 80
milhões de habitantes e um reticulado extremamente denso da pequena propriedade
rural na bacia do Danúbio.
Não tem o Danúbio represamentos com
grandes lagos como o de Três Marias e o de Sobradinho, que, notemos, talvez nem
sempre funcionem tão bem como regularizadores de vazão quanto deveriam, algo
que pode fazer lembrar, talvez, um descuido espanhol na operação da barragem de
Alcântara no alto Tejo, soltando água tardiamente em 1979 sobre a gentil
Lisboa, no evento acima comentado.
O verão que se aproxima do São
Francisco, agora com a Pampulha enobrecida, parte dele reconhecida com o mesmo
galardão do Danúbio, requer que Belo Horizonte tudo faça para garantir
segurança e prosperidade a seu povo, mas também, no que estiver a seu alcance,
a seus vizinhos longínquos da bacia.
Belo Horizonte, 25 de agosto de
2016.
__________________________
Edézio Teixeira de Carvalho
Engenheiro Geólogo
Nenhum comentário:
Postar um comentário