20 de janeiro de 2017

O São Francisco e o Danúbio

O SÃO FRANCISCO E O DANÚBIO

GC 409 SÃO FRANCISCO E DANÚBIO

Por idos de setembro nos idos dos baixos anos 50, Zé Bento, Dendéu e Mário, entre por-do-sol e escurecer, pela altura da novela de rádio tocado a roda Pelton, picavam fogo no dorso do elefante, pode-se dizer exatamente pelo fio do lombo da grande encosta da margem direita do Gualaxo, exatamente como o perfil de elefante deitado. Surpreendente a capacidade de estender simultaneamente linha de fogo contínua pela crista de mais de quilômetro de extensão. Do lado de cá, diante das sombras e fumaças, caíam resíduos de folhas leves de capim queimado, enquanto na novela o tiroteio prosseguia; amanhã as cinzas marcarão os rastros dos que cuidarão das vacas e bezerros.
O Gualaxo (i guaraxuê, ou o poço do caburé quebrado, obtido de autor neste momento não lembrado) de setembro era azul marinho, nas vésperas de receber enxurradas encorpadas pelos sulcos dos arados, e tornar-se emissário barrento da erosão que antecedia o florescer do milho, que deveria estar capinado até 22 de dezembro, do contrário, segundo a tradição local, o Tomé passaria pela roça, e era prejuízo cer-to. Hoje a margem direita tem biotitagnaisse mais exposto que em 1950, coqueiros, palmito, e mata secundá-ria. Sem moradores não mais produz um grão de milho (profecia realizada de Sá Maria Gabriela?). Hoje rio mais magro e mais limpo.
O que é o São Francisco senão uma multidão de gualaxos? Vejamos numa imagem do dia comparação de débitos entre o Tocantins e o São Francisco. Não sabendo a origem, nem tendo dados com-parativos, não sei se O São Francisco é, de fato, tão mesquinho.

Vamos, entretanto, por outro caminho, porque urge falar um pouco de outras formas de comparação. A famigerada caixa d’água do Brasil, que, por outras razões, chamei de toda rota, (numa visão geograficamente mais larga) abastece o rio Grande, e, portanto, o Prata, o Paraíba do Sul, o Doce, O Mucuri, o Jequitinhonha, o Contas e, salvo algum esquecimento, o próprio São Francisco. Se o dado comparativo acima está correto, pelo menos em ordem de grandeza, seria uma razão a mais para justificar a posição contrária à transposição construída e divulgada pelo Projeto Manuelzão. Pessoalmente sempre considerei transposições uma medida complicada, não só por seu impacto ambiental mais visível, mas, principalmente por um direito fundamental do cidadão residente na parte atingida pela transposição, portanto a jusante do ponto de derivação: é um efeito de sentido territorial, quase tanto quanto a tomada do próprio território. Outro efeito que em certo momento apontei, já começou a multiplicar-se. Com efeito, transposição tornou-se algo juridicamente admissível, quando deveria ser cláusula pétrea da constituição territorial descrita em constituição das nações. Já pensaram se um país das cabeceiras do Amazonas resolve fazer uma grande transposição para o Pacífico com o fim de produzir algumas Cubatões de energia elétrica?
Antes de saltar para uma comparação europeia, digo que uma das maiores surpresas que tive foi presenciar uma cheia do Tejo em 1979, que fez o rio, de porte semelhante ao Doce, na altura de Colatina alcançar largura de nada menos que 70 quilômetros na região chamada Ribatejo, a montante de Lisboa. (Lembro-me, a propósito, de que em comentários a respeito um colega meu, de lá, bem humorado, disse: “Não se assuste, porque temos outros dados amazônicos; afinal, não sabes que Cascais é o ponto em que a ribeira de Atrozela se une ao Tejo para formar o Atlântico?”.
Belo Horizonte, mesmo não sendo ribeirinha direta do São Francisco, é a única capital da bacia, e, com a Região Metropolitana, a maior concentração populacional dela. O Danúbio é rio de muitas capitais, que tem, além de Viena, Bratislava, Budapeste, Belgrado, não contada Bucareste, ainda na bacia, embora não ribeirinha.
Acho que esta é a grande diferença entre o São Francisco e o Danúbio. Com efeito, é como se a jusante de Viena, próxima da cabeceira como Belo Horizonte, não houvesse mais centros urbanos de populações equivalentes a impor demandas e sediar a nucleação de políticas estaduais de desenvolvimento da bacia. Lá, além dessas capitais, há países e não estados.
Diante de tal contexto político, as diferenças físicas, certamente importantes (geologia, clima, com cheias de degelo dentre outras diferenças), não são relevantes. Esse mundo físico oferece até similaridades, como recente impacto de ruptura no sul da Hungria de barragem de rejeito de mina de alumínio, levando contaminantes ao baixo curso do delta, onde é preservada a luxuriante mata de um patrimônio cultural da Humanidade. A ocupação humana é também incomparável, com nada menos que 80 milhões de habitantes e um reticulado extremamente denso da pequena propriedade rural na bacia do Danúbio.
Não tem o Danúbio represamentos com grandes lagos como o de Três Marias e o de Sobradinho, que, notemos, talvez nem sempre funcionem tão bem como regularizadores de vazão quanto deveriam, algo que pode fazer lembrar, talvez, um descuido espanhol na operação da barragem de Alcântara no alto Tejo, soltando água tardiamente em 1979 sobre a gentil Lisboa, no evento acima comentado.
O verão que se aproxima do São Francisco, agora com a Pampulha enobrecida, parte dele reconhecida com o mesmo galardão do Danúbio, requer que Belo Horizonte tudo faça para garantir segurança e prosperidade a seu povo, mas também, no que estiver a seu alcance, a seus vizinhos longínquos da bacia.
  

Belo Horizonte, 25 de agosto de 2016.
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Edézio Teixeira de Carvalho
Engenheiro Geólogo


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